
Diário de bordo de Gaza (Rami Abou Jamous)
«Walid está aos poucos saindo do mundo imaginário que criei para ele»
Rami Abou Jamous escreve seu diário para o site Orient XXI. Fundador do GazaPress, um escritório que fornecia ajuda e tradução para jornalistas ocidentais, ele foi obrigado a deixar seu apartamento na cidade de Gaza em outubro de 2023 com sua esposa Sabah, os filhos dela e seu filho Walid, de três anos, sob ameaça do exército israelense. Refugiados desde então em Rafah, a família teve que se deslocar para Deir El-Balah e depois para Nusseirat, encurralados como tantas outras famílias nesse enclave miserável e superpovoado. Um mês e meio após o anúncio do cessar-fogo de janeiro de 2025 — rompido por Israel em 18 de março —, Rami finalmente está de volta em casa com sua esposa, Walid e o recém-nascido Ramzi. Por este diário, Rami recebeu o prêmio de imprensa escrita e o prêmio Ouest-France no Prix Bayeux para correspondentes de guerra.
Domingo, 13 de julho de 2025
— Papai, olha, tem um helicóptero sobre a gente!
— Sim, Walid, eu vi. É bonito.
— Não, papai, não é para os paraquedas, é para os “tartifícios” [fogos de artifício].
— Sim, mas mesmo os “tartifícios” são bonitos, não é?
— Papai, esses “tartifícios” machucam. Eles destroem casas. Olha o que fizeram da última vez. Destruíram casas.
— Mas não, Walid, agora não são casas sendo destruídas, são fogos de artifício. É um engano.
— Não, papai, vou chamar a polícia. Eles precisam parar com os “tartifícios”.
Esse foi o diálogo que tive com meu filho Walid outro dia. Ultimamente, drones e helicópteros têm sobrevoado nossa área, e nós os vemos claramente do nono andar do nosso prédio no centro da cidade de Gaza, um dos poucos edifícios que ainda estão de pé. Enquanto conversávamos, um míssil foi lançado de um dos helicópteros com um assobio. Vimos destruir parte de um prédio a algumas centenas de metros do nosso.
É isso que Walid chama, em seu francês infantil, de “tartifícios”. Desde o início da guerra, eu o fiz acreditar que mísseis e bombas eram apenas fogos de artifício. Mas, ao se aproximar dos quatro anos, ele começa a entender que esses “fogos de artifício” podem ser perigosos e que os helicópteros não estão lá para lançar ajuda humanitária, como os aviões fizeram no início da invasão israelense. Por isso, ele quis chamar a polícia: aquele helicóptero não estava usando os fogos de artifício direito, estava usando para destruir casas. Walid está aos poucos saindo do mundo imaginário que criei para ele, para poupá-lo da realidade mortal que estamos vivendo.
A LEI COLONIAL IMPÕE AS REGRAS DO JOGO
Ao mesmo tempo, ele entende que deve existir alguma forma de justiça na Terra. Ele queria “chamar a polícia” para fazer valer o direito. Ele gosta de helicópteros, sonha em um dia entrar em um para soltar fogos de artifício e paraquedas. Mas, naquele momento, ele achou que o helicóptero estava abusando. A justiça é algo inato nos seres humanos, é universal. Mas não quando se trata dos palestinos. Vivemos a injustiça desde 1948. Desta vez, ela se manifesta abertamente. O Ocidente não tenta mais escondê-la sob narrativas de propaganda. Não fecha mais os olhos.
Não falo das pessoas, entre as populações ocidentais, que protestam por justiça e pelos palestinos. Para a maioria dos líderes, a injustiça é cometida contra Israel. França e Itália autorizaram o avião de Netanyahu a sobrevoar seu espaço aéreo, ignorando o mandado de prisão da Corte Penal Internacional (CPI) contra ele. Não apenas não o prendem, como continuam a apoiá-lo, fornecendo material militar. Enquanto isso, a Microsoft demite funcionários que protestaram por Gaza. Bancos impedem ONGs de transferir fundos para Gaza. Os EUA sancionam magistrados da CPI e todos os que não apoiam Israel. Recentemente, adicionaram à lista Francesca Albanese, relatora especial da ONU, uma das poucas figuras de estatura internacional a denunciar um genocídio em Gaza. Ela é punida por dizer a verdade.
Aos poucos, descobrimos a realidade desses “valores” de que o Ocidente nos fala, especialmente quando vem conquistar nossos territórios: “Queremos libertá-los da injustiça, dar-lhes democracia e direitos humanos”, dizem os líderes ocidentais há tempos. Nós entendemos que são apenas palavras, que o verdadeiro motor é o lucro. Vemos que nem essa justiça nem essa democracia existem, e que é a lei colonial, a do mais forte, que impõe as regras do jogo.
É exatamente isso que o exército de ocupação faz. O 7 de outubro foi um grande presente para Israel, permitindo-lhe fazer hoje o que não pôde desde 1948: expulsar toda a população palestina de Gaza. O debate sobre o uso da palavra “genocídio” esconde o projeto israelense: a deportação forçada de toda a população de Gaza. E, se não funcionar pela força, funcionará com mais força ainda. Ou seja, mais massacres, carnificinas e “israelices” para mover os gazenses.
NEM UMA CIDADE, NEM HUMANITÁRIA: UM CAMPO DE CONCENTRAÇÃO
Recentemente, o ministro da Defesa israelense — ou melhor, o ministro da guerra — anunciou a intenção de criar uma “cidade humanitária” em Rafah. Não há mais vida em Rafah, nenhum prédio de pé. Os israelenses o transformaram em um terreno vago, justamente para construir essa “cidade humanitária”. Segundo o ministro, ela abrigará 600 mil pessoas inicialmente, com a possibilidade de, no futuro, receber toda a população de Gaza. Esses 600 mil são os gazenses que vivem na “zona tampão” decretada por Israel, com dois ou três quilômetros de largura a partir da fronteira com Gaza. Ou seja, cerca de 40% da área de Gaza transformados em terra de ninguém.
Essa cidade não é uma cidade nem humanitária: não terá infraestrutura de uma verdadeira urbe. Será um campo. As entradas serão controladas. Membros de partidos ou facções não poderão entrar. A entrada será “voluntária”, mas, uma vez dentro, não se poderá sair, exceto para exílio em outro país. Uma decisão que também será "voluntária".
O ministro espera assim dar um verniz legal a seu plano, como Israel sempre fez. Mesmo lá, advogados, ONGs e agora figuras políticas deram o nome certo ao projeto: “Sinto muito, mas é um campo de concentração”, declarou o ex- primeiro-ministro Ehud Olmert em 13 de julho ao The Guardian, acrescentando: “Não há outra forma de entender essa estratégia. Ela não visa salvar os palestinos, mas deportá-los, expulsá-los, jogá-los para fora.”
Essas palavras — “campo de concentração”, “deportação” — pesam quando saem da boca de um político israelense. Sem dúvida, muitos mais as usarão quando não houver mais ninguém em Gaza, porque todos terão sido mortos ou deportados. E, aí, o mundo dirá: “Era mesmo um genocídio.” Um genocídio sem precedentes em nosso século.
A ÚNICA ETNOCRACIA DO ORIENTE MÉDIO
Walid ainda acredita em uma justiça que pode impedir os “tartifícios”. Os que governam o mundo não acreditam. Uma criança de quatro anos distingue o bem do mal; eles, não. O Ocidente, liderado pelos EUA, quer fazer o mundo crer que tudo o que Israel faz contra os palestinos é culpa dos palestinos. Segundo essa narrativa, Israel só quer melhorar a vida dos palestinos. É o Hamas que mantém 2,3 milhões de gazenses como reféns. Destroem-se hospitais por causa do Hamas, infraestrutura por causa do Hamas, escolas, universidades… Destroem-se 2,3 milhões de pessoas por causa do Hamas — isto porque, em 2006, os palestinos votaram no Hamas.
Foi o Ocidente que pressionou os palestinos a realizar eleições legislativas, mas, quando o Hamas venceu, o Ocidente não aceitou a democracia, porque o resultado não lhe convinha. Isso me faz rir quando dizem que Israel é "a única democracia do Oriente Médio". Deveríamos falar em “etnocracia”, diante de um país que se autodefine, por uma lei de julho de 2018, como “o Estado-nação do povo judeu”.
Eu aconselho os ocidentais, se quiserem se aproximar da realidade, a dizer que Israel é “o único Estado etnocrático do Oriente Médio”. E, em nome da etnocracia, esse Estado bem organizado prende, mata, tortura, ocupa territórios e planeja expulsar os palestinos de sua terra.
A população de Gaza está exausta. De deslocamento em deslocamento, de bombardeio em bombardeio, de massacre em massacre, de genocídio em genocídio. Vive uma fome crescente, com como único remédio as esmolas do carrasco, que finge nos dar comida e água só para brincar de hunger games: nos centros de distribuição, os mais fortes pegam uma caixa de comida; os mais fracos são mortos por balas e obuses do exército israelense em emboscada.
Tudo isso acontece sob os olhos do mundo, onde a maioria não tem nem os olhos nem o coração de Walid para distinguir o bem do mal.
RAMI ABOU JAMOUS
Jornalista palestino em Gaza.
Traduzido do Orient XXI, de 16 de julho de 2025.