Teoria como pedra (Stephen Sheehi)
Este texto é parte de um projeto editorial construído em uma parceria entre o coletivo desorientalismos, a n-1 edições e o Núcleo Psicanálise e Laço Social no Contemporâneo (Psilacs) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Uma seleção de textos que aborda a Questão Palestina em um diálogo com a Psicanálise e outras áreas do conhecimento, como a História, Filosofia, Sociologia e Saúde Mental. A cada quinze dias, um novo texto será lançado.
Em uma entrevista por telefone em 2001 com o The New York Times, de Viena, Johann August Schülein, então presidente da Sociedade Freudiana de Viena, disse sobre o desconvite de Edward Said: “muitos membros de nossa sociedade nos disseram que não podiam aceitar que convidássemos um palestino engajado, que também atira pedras contra soldados israelenses”.
Vinte e poucos anos depois, conhecemos bem a história: a Sociedade Freudiana de Viena cancelou o convite ao intelectual palestino Edward Said. O que fez com que ele fosse desconvidado foi uma fotografia que também conhecemos bem: Edward Said, na fronteira libanesa, atirando uma pedra em uma torre de guarda das Forças de Ocupação Israelense (IOF, na sigla em inglês). Posteriormente, Jacqueline Rose, diretora do Museu Freud em Londres, fez um convite a Said, o que resultou em sua famosa palestra (e, posteriormente, em seu livro) Freud e os não-europeus.
O desconvite de Viena a Said certamente chama nossa atenção para os limites da liberdade acadêmica nas democracias liberais e fornece um pedigree distinto ao assédio e à perseguição entusiástica e descarada de professores, artistas, ativistas e estudantes, não apenas por grupos externos pró-Israel defensores do genocídio, mas também por presidentes de universidades norte-americanas e europeias.
O desconvite mostra o que se tornou terrivelmente claro nos campi universitários e nos institutos psicanalíticos desde 7 de outubro de 2023: o humanismo universal das chamadas democracias ocidentais liberais não tem espaço para a humanidade mundana, muito menos para a mundanidade desafiante dos palestinos.
Said nos deu esse conceito de “mundanidade”, de estar no mundo e ser do mundo. Não é como Spivak que rastreia habilmente como os nativos são colocados em um mundo cartesiano-nacionalizado do autor-administrador-mapeador colonial. É mais do que o ser no mundo de Heidegger e excede o lebenswelt imaginado por Husserl. A mundanidade é ser do mundo, um mundo de relações uns com os outros em um mundo de recusas governado pela colonialidade, branquitude, cisheteronormatividade e capitalismo, uma mundanidade excluída, negada ou recusada pelas ontologias mediadas pela “etnoclasse ocidental do homem”.
A mundanidade de Said comunga com o tout-monde de Edouard Glissant ou “mondialité”. É a mundanidade de um relacionamento com a terra, os ancestrais, os anciãos e os irmãos que os habitantes de Gaza e todos os palestinos habitam, pelos quais lutam, pelos quais vivem e, infelizmente, pelos quais morrem. A definição de mundanidade exige que não sejamos abstratos, mas que sejamos poéticos e concretos. É uma mundanidade pela qual milhões de pessoas nas ruas estão lutando agora ao lado do povo palestino. Edouard Glissant nos ensina a considerar como os textos poéticos trazem à tona as realidades e experiências materiais nas quais vivemos juntos globalmente — em relação a um mundo compartilhado e cocriado, embora assimétrico, de exploração, violência e genocídio, como está acontecendo agora em Gaza, e também de criatividade, beleza e contestação.
Nas universidades norte-americanas e europeias, somos ensinados a considerar a mundanidade de pessoas, objetos, imagens e textos. Mas essa é uma mundanidade ensinada em um “lugar sem dimensão”, diria Glissant, um lugar que o destitui de suas verdadeiras relações sociais. Estamos vendo hoje, sob a sombra gritante do genocídio, que a universidade tem espaço apenas para a abstração (e monetização) da mundanidade negra, marrom, queer, indígena e da classe trabalhadora, mas não tem espaço para as realidades materiais de sua existência. Não há lugar de e para os palestinos na definição disciplinar de mundanidade acadêmica, especialmente nos campi estadunidenses, canadenses e europeus.
Glissant é claro ao nos ensinar que mondialitié não é universalismo (ou globalização), mas uma mundanidade que é determinada por nossa relação com o conhecimento do mundo; conhecimento e experiência constituídos por meio da experiência comunal, não individual (ou talvez experiências filiativas, se combinarmos Said e Glissant). Nessa relação com o mundo, os sujeitos coloniais, marginalizados e racializados conhecem um mundo que, de outra forma, é imperceptível e ilegível para — se não negado por — aqueles que detêm o poder e os que têm privilégios, aqueles que arrastaram tantos para o genocídio, para o “abismo”.
Para Said, textos, imagens e objetos são de seu momento e lugar, mas a plenitude de seu significado latente só vem à tona em qualquer momento político subsequente. No que se torna Gaza nessa fotografia de Said? Do momento da pedra, a pedra na mão de um árabe? Edward Said atirando uma pedra? Edward Said, árabe e palestino no exílio, cuja família viveu no exílio no Egito, no Líbano e nos Estados Unidos, jogando uma pedra em Bab al-Fatima.
Edward Said atirando uma pedra em uma fronteira criada por meio de um acordo secreto entre burocratas coloniais, forjado ao mesmo tempo que os árabes, aos quais foi prometida a independência, se aliaram à França e à Grã-Bretanha contra seus antigos irmãos otomanos. Uma fronteira reforçada pela Fortaleza de Israel. Edward Said joga uma pedra, talvez duas. Sua filha, Najla, uma dramaturga, e seu filho, Wadie, hoje um eminente acadêmico de direito, estão fora do quadro. O pé e o perfil lateral do militante marxista e intelectual libanês Fawwaz Traboulsi aparecem nas margens em primeiro plano da foto.
Ao pegar uma pedra, uma pedra da terra (al-ard), Said se revelou como sendo daquela terra. Ele não está mais “fora do lugar”, mas é do lugar. A pedra revelou que ele era natural daquela terra. Ele segurava aquela pedra, aquele solo. Ela o segurou. A imagem nos mostra que a pedra era indistinguível dele e indistinguível da mundanidade de sua teoria. A pedra mostrava que ele era palestino; Edward Said — pedra na mão — revelou, para horror dos austríacos, israelenses e seus cúmplices imperialistas liberais, que ele era daquela terra e de sua teoria.
Said havia violado algo. Não se tratava de atirar uma pedra em um judeu, o que não aconteceu. Não se tratava de atirar uma pedra em um soldado israelense que se defendia valentemente das hordas árabes, o que não aconteceu. Não era Said jogando uma pedra em uma torre de vigia israelense vazia sobre uma fronteira tão saturada de violência.
Em vez disso, Said pegou uma pedra, uma pedra da terra em que as plantações e pomares palestinos e libaneses são cultivados e as casas são construídas; plantações, pomares e casas que são arrancadas, demolidas ou roubadas e ocupadas por colonos israelenses, que afirmam, em um ato supremo de dominação da realidade colonial, que eles — e não os palestinos — são os proprietários nativos.
Said pegou uma pedra, uma pedra que pode nos conectar à Rocha sobre a qual o Domo foi construído em Jerusalém. Ele pegou uma pedra em um vilarejo libanês, Kafr Killa, a apenas alguns quilômetros de distância de vilarejos palestinos despovoados, como Hunin. Seus vestígios existem sob a atual colônia-moshav Margoliot. A população xiita de Hunin foi aterrorizada por meio de assassinatos, violência sexual e acordos não cumpridos, e obrigada a buscar refúgio do outro lado da fronteira colonial em vilarejos irmãos, como Kafr Killa, em 1948, sem nunca ter permissão para retornar aos seus lares ancestrais. Com essa relação enraizada entre tempo e local, as pedras da terra que Said lançou nos guiam para ver como “a atenção palestina à sedimentação extremamente rica da história e das tradições orais dos vilarejos muda potencialmente o status dos objetos”, direcionando-nos, assim, como Said nos ensina, “aos remanescentes de uma vida nativa contínua e às práticas palestinas vivas de uma ecologia humana sustentável”.
Essa ecologia humana não é uma metáfora geológica abstrata e vazia. Tiffany Lethabo King nos incentiva a considerar a configuração geológica do banco de areia como uma análise que considera os estriamentos espirais entrelaçados do geográfico, geológico, social e histórico. Se as críticas de Said ao colonialismo puderam ser absorvidas pela universidade liberal e pelos institutos psicanalíticos, a contestação em corpo de Said chamou a atenção para a geologia e a geografia, para a materialidade aterrada de sua teoria e para as práticas sociais e intelectuais normativas e os modos de ser contra os quais os negros e os indígenas são definidos e que sua presença perturba. King cita Mishuana Goeman, estudiosa de Sêneca, ao pensar em “concepções indígenas da terra como conectada [em vez de] terra como parcelas desagregadas em várias escalas de acumulação concebidas pelos europeus”. A fotografia de Said forçou seus admiradores liberais a testemunhar desconfortavelmente que ele, assim como o texto e o crítico, estão “enredados em circunstâncias, tempo, lugar e sociedade — em suma, eles” — a fotografia como texto e Said como crítico — “estão no mundo e, portanto, terrenos”.
Portanto, Said violou o que a academia ocidental achava que havia consensuado — uma leitura equivocada da mundanidade do intelectual palestino engajado. Vamos nos lembrar das palavras de Schülein: “Muitos membros de nossa sociedade nos disseram que não podem aceitar o fato de termos convidado um palestino engajado, que também joga [pedras]”. Esse termo, engajado (engagé), não é inocente, especialmente em uma Europa bem familiarizada com a popularização do termo por Jean-Paul Sartre no primeiro volume de Os tempos modernos. No entanto, no contexto da Palestina, os intelectuais engajados, assim como a literatura engajada (al-adab al-iltizam), têm uma tradição que chega até o trabalho de Ghassan Kanafani. O que está sendo dito a Said é claro: permaneça na abstração de Sartre e distancie-se da prática de Kanafani. Seja um exilado intelectual engajado, mas nunca um nativo militante engajado.
Aqui, o livro de Freud Psicopatologia da vida cotidiana é útil. A partir desse texto, podemos considerar a retirada do convite da Sociedade Vienense como estrutural, comum e proveniente da “posição privilegiada” da Diretoria, que considerou a decisão tão “leve” e “não obstrutiva” que não justificaria o tipo de atenção internacional que recebeu. Uma leitura sintomática do cancelamento nos afasta de explicações manifestas. A divisão, ao contrário, é clara: Viena queria Said, o intelectual, sem a mundanidade de seu intelecto. Eles queriam um Said racional com textos, mas sem sua bagagem afetiva.
Eles queriam o exílio palestino, um palestino sem um país, um palestino sem a Palestina. Mas a pedra quebrou a negação (Verleugnung); a pedra prende o palestino à Palestina, não como metonímia, mas como base material real da terra. Assim como o poema de Glissant, a fotografia é o desenrolar de suas origens na mundanidade do lugar, do espaço e da materialidade.
Em “O texto, o mundo e o crítico”, a admoestação de Said aos teóricos que ignoram o mundo material e a ética de uma “consciência crítica” surge com mais força agora, na época do genocídio contra os palestinos, tão prontamente repudiado por acadêmicos e políticos liberais. Os críticos que leem textos (e teorias) fora de seu mundo “perdem o contato com a resistência e a heterogeneidade” do texto, “predeterminando alegremente o que discutem, convertendo tudo em evidência para a eficácia do método, ignorando descuidadamente as circunstâncias das quais toda teoria, sistema e método derivam em última instância”. Essa negação é uma forma de conluio.
Tanto Said quanto Glissant, como o próprio Freud, não eram movidos pela tensão binária clichê, mas funcional, entre teoria e ação; entre o psiquismo e o social; o espaço terapêutico e a rua; ou entre o pensamento e suas dimensões materiais. Glissant nos adverte: “pensar o pensamento geralmente equivale a se retirar para um lugar sem dimensão onde a ideia do pensamento persiste sozinha”. Mas para o poeta-intelectual engajado — para o poeta-intelectual colonizado — “o pensamento, na realidade, se insere no mundo”. Ele forma o imaginário dos povos, suas variadas poéticas, que então transforma — o que significa [que] neles, [o pensamento] corre o risco de se tornar realidade”.
Said se torna o que o intelectual martirizado Basil al-A’raj chamaria de muthaqqaf mushtabak, um intelectual engajado, um intelectual militantemente engajado. Said com a pedra tornou real Said com a teoria. Said é de um lugar, mas também de um momento coletivo de libertação. Nessa imagem e nesse momento, Said existe em diferentes pontos do tempo e do espaço, ligando a Intifada da década de 1980 à Intifada de al-Aqsa que estava ocorrendo no exato momento em que ele estava jogando a pedra.
Ao revelar ainda mais essa fotografia, descondensando o trabalho onírico dessa imagem de volta à materialidade de seu momento, lembramos que a visita de Said à fronteira ocorreu pouco depois da libertação do sul do Líbano, apenas alguns meses antes, pela resistência libanesa, após vinte e dois anos de ocupação israelense ilegal que resultou em dezenas de milhares de mortes de libaneses e palestinos, sem mencionar a detenção ilegal e a tortura de milhares de homens e mulheres por israelenses e seus representantes libaneses.
A pedra é a teoria no mundo. A pedra de Said foi uma homenagem à resistência libanesa e uma promessa ao povo palestino de que a resistência será bem-sucedida.
Mas agora, a plenitude da pedra emerge na mundanidade de uma imagem que confirma Edward Said como, sim, um mujahid, um lutador. A pedra o conectou com os “filhos da pedra” da primeira Intifada e com a resistência em Gaza, lutando e vivendo entre pedras de casas demolidas. Se Gaza está soterrada pelo genocídio israelense que tem como alvo vidas inocentes, a cada dia com mais e mais escombros, mais e mais pedras, a imagem de Said é “uma parte do mundo social, da vida humana e, é claro, dos momentos históricos nos quais eles estão localizados e são interpretados”.
Esse texto “mundano” está em comunidade com outros textos, outras vidas, outras relações poéticas, para usar o termo de Glissant, relações poéticas de resistência e “poder psíquico-político” que irrompem dos “locais de morte” do colonialismo de povoamento, como Nadera Shalhoub-Kevorkian nos ensina, para gerar e regenerar continuamente uma “incorporação psicossocial coletiva da resistência cotidiana”. A imagem e o evento atuam em comunhão com as pedras de Gaza tão prontamente quanto as pedras de gerações de palestinos que resistem.
Assim como Said pegou uma pedra como parte de sua gramática filiativa de resistência herdada dos palestinos da primeira Intifada, a resistência em Gaza e na Cisjordânia agora luta pela libertação tendo Said como um elemento filiativo. Ao pensar nessa poética das relações filiais e afiliativas que unem os palestinos ao longo do tempo, relações poéticas que desafiam o tempo colonial dos colonizadores, a imagem de Said e sua pedra e a resistência dos habitantes de Gaza se reúnem no poema do célebre poeta sírio, Nizar Qabbani, escrito em Beirute durante a primeira Intifada.
Atire uma pedra
O rosto da Palestina se inicia
Ela tem o formato de um poema.
Atire a segunda pedra
Acre flutua na água, um poema de poesia.
Atire a terceira pedra
Ramallah parece violeta após a noite de opressão.
Atire a décima pedra
Até que a face de Deus apareça
A luz do amanhecer apareça
Jogue uma pedra de revolução
Até que o último fascista caia
Quem fascistizou essa era.
Atire
Atire
Atire
Agradecemos ao autor Stephen Sheehi por gentilmente nos conceder o direito de publicação deste texto em português, originalmente publicado no dossiê Palestine Now, na Social Text Journal, em 25 de janeiro de 2024.
Tradução: Dafne Melo
Stephen Sheehi (اسطفان شيحا-ele/dele) é professor de Estudos do Oriente Médio e docente do Programa de Estudos Asiáticos e do Oriente Médio, do Departamento de Línguas e Literaturas Modernas e Programa de Estudos Asiáticos e das Ilhas do Pacífico na William & Mary, no Território da Confederação de Pamunkey, atualmente conhecido como Virgínia (EUA). É diretor do Projeto Descolonizador de Humanidades. Atualmente, está como professor visitante nos departamentos de Literatura Comparada e História no Instituto de Estudos de Pós-Graduação de Doha. Sheehi é autor de cinco livros sobre o mundo árabe, fotografia e psicanálise, bem como islamofobia e racismo na América do Norte. É coautor de Palestine: Psychoanalysis Under Occupation: Practicing Resistance in Palestine com Lara Sheehi (Routledge, 2022), que ganhou o Palestine Book Award de Melhor Livro Acadêmico de 2022 sobre Palestina; e Camera Palaestina: Photography and Displaced Histories, em coautoria com Salim Tamari e Issam Nassar (University of California Press, 2022).