“Sou uma peça de teatro”
Zahy Guajajara
Coautora Elaine Rollemberg
Para falar do que sou, penso em substantivos e adjetivos tão diversos que não trariam qualquer definição, mas um conceito importante talvez: a pluralidade. Chamam-me Zahy e para o universo que existo, ou que existimos, me apresento a vocês como uma peça de teatro.
Por definição histórica, em resumo, a peça teatral é uma história encenada diante de uma plateia. Também consideradas dramas, as peças ganham tal definição junto ao conceito de teatro vindo da HYPERLINK “https://pt.wikipedia.org/wiki/Gr%25C3%25A9cia_Antiga”Grécia Antiga. O termo theátron, cujo radical da palavra é o mesmo de theoria, designa um espaço de assistência a distância, uma avaliação e reflexão sobre o que se apresenta. Já o verbo drân, que designa drama, significa agir e não admite conjugação no passado, por ser considerado algo sempre em processo.
A dramaturgista Fátima Saadi, em seu ensaio “A Teatralidade”, nos fala o seguinte:
“O théatron é, portanto, não apenas o lugar onde se vai para ver de longe, a distância, mas também o lugar onde se vai para ver a própria distância, o espacejamento entre o homem e suas ações, a articulação entre o indivíduo e a sociedade.” (PARDO. 2011, p. 330)
Provocada por tal pensamento, considerando minhas ações como movimentos expressivos da minha existência e posta às minhas observações e dos outros, apresento o título “Sou uma peça de teatro” como uma extensão dessa provocação, um convite à reflexão da nossa humanidade ou teatralidade.
Sou uma peça de teatro porque acredito que a vida nada mais é do que uma grande encenação. Permitam-me dizer que estou usando a palavra “encenação” no melhor sentido, atuação. Somos todos atores, diretores, dramaturgos de nós mesmos e das nossas histórias.
Augusto Boal em sua “Poética do Oprimido” nos diria, ainda, que somos todos “espect-atores”, atores e espectadores, nós agimos e observamos a nós e ao mundo. Nós, humanos, somos capazes de nos emocionar com pensamentos e pensar emoções. Encenamos crenças, criamos verdades e vendemos imagem. Produzimos máscaras sociais, as quais julgamos serem boas e trabalhamos para nos sentirmos amados e aceitos dentro do que entendemos como cultura. No entanto, vale refletir sob que ótica atua nosso julgamento. Parafraseando Boal, devemos refletir não apenas como artistas, mas como cidadãos porque este não é um tema de teatro somente, mas de cidadania.
“Mesmo quando a evidência salta os olhos, há quem não perceba que o mundo está sendo cada vez mais dominado pelos dogmas da economia de mercado – O Deus Mercado substituiu os outros deuses! Sua fome é o lucro! (…) Vale o lucro, os dividendos: a vida humana nada vale, e as mortes não se contabilizam! Diante do mercado e do lucro, que no mundo globalizado substituem todos os valores chamados ‘humanísticos’, temos que tomar uma posição filosófica, política e social – ação!” (Boal. 2019, p. 23)
E como atriz na vida, eu acredito nessa ação como agente de transformação, dedicada à equidade, ao respeito, à liberdade e à humanidade. Porque, embora oprimidos por uma sociedade capital poderosa e determinante, não estamos fatalmente definidos por seus desígnios, escrevemos e atuamos em nossas vidas. Somos também autores e responsáveis por nós e podemos agir para que “o homem deixe de ser o lobo do homem”.
Não que isso seja fácil, porque tais desígnios dessa sociedade opressora são enraizados no nosso tempo cronológico e biológico. Pensemos juntos… Somos a única espécie da natureza que necessita sair dela para se sentir existente, inteligente, produtivo ou utilitário. Assim que saímos do útero da nossa mãe (também da mãe terra), ainda recém-nascidos, já nos são impostas regras a serem seguidas para nos tornarmos “agentes civilizados”. Logo, chega o momento em que precisamos nos tornar “adultos” fortes, habilidosos e autossuficientes capazes de matar nossa própria natureza para sobreviver neste mundo competitivo, individualista e capitalista, em que nos encontramos. Infelizmente, percebo que assim surge a necessidade de “encenar” nossa história por uma questão de sobrevivência.
Eu, como filha da contemporaneidade, tanto quanto da ancestralidade, não fugi desse atravessamento, sou também acometida por ele, mas atuo em sua transformação. Eu transgrido o óbvio e luto para salvar a natureza (interna e externa) e existir nestes tempos. Desta forma, para dividir com vocês a minha razão atual sobre quem sou, comparando-me à uma peça e porque acredito muito no poder do teatro, preciso falar um pouco sobre meu caminho até aqui.
Em 2019, quando subi em um tablado pela primeira vez, no espetáculo “Macunaíma – Uma rapsódia musical”, deparei-me com o tal teatro. Algo me incomodava profundamente no início desta experiência. Eu tinha muita dificuldade em entender o teatro como me apresentavam, encontrava muito mais perguntas do que respostas e questionava qual o meu papel ali. Para além do meu personagem: Quem eu era no teatro? Por que fazer teatro? E qual a relação dos indígenas com o teatro?
Eu não venho de uma cultura que tem como tradição ler e escrever. Embora tenha vivenciado uma educação formal, meu aprendizado foi muito mais prático e sensorial. Da mesma forma, eu cheguei até o teatro. Ou, poderia dizer que: caí de paraquedas! Minha trajetória artística se deu pela atividade e sem nenhum estudo específico sobre atuação. O distanciamento da leitura, em um primeiro contato com o teatro, dificultou muito a minha vida como atriz, já que é preciso uma dedicação aos textos, à teoria e à pesquisa. Eu sentia que precisava me esforçar muito mais do que os demais para atuar.
Algumas vezes, no início dos ensaios de “Macunaíma”, eu voltava para casa me sentindo frustrada, inútil e deslocada. Eu sentia vontade de não voltar mais aos ensaios. Não tinha satisfação com o meu processo e nem com o processo dos outros. Era muito difícil lidar com as questões que iam se revelando de cada indivíduo e em mim e isso me afetava de uma maneira muito negativa.
Há, quase sempre, uma desqualificação dos indígenas e de suas obras. Alvos de preconceitos, somos vistos como incultos, sem qualidade, sem refinamento, incapazes de atuarmos em um grande papel, seja na vida ou no teatro. É preciso muita força e estratégia para suportar as regras preestabelecidas nesta realidade.
Fui aprendendo com a experiência a importância do estudo teórico, para além do prático, como uma ferramenta de auto-observação e autodescoberta, para que seja possível uma reinvenção de mim mesma. Estou sempre disposta a aprender e venho me dedicando a este estudo. Em contrapartida, quando percebi que a minha cultura me dá elementos fundamentais como atriz, me apeguei a minha formação ancestral para me orientar em meus estudos atuais e com propriedade utilizo ela como minha melhor ferramenta artística.
A cultura indígena é naturalmente artística. A arte indígena é baseada em seus conhecimentos inatos, ou seja, é a sua própria existência em suas obras. Uma cultura viva produz contemporaneidades artísticas, mas sempre valorizando a experiência histórica que se memorizou. A ancestralidade nunca se perde, ela revive na atualidade.
Para nós indígenas, não é preciso ser reconhecida, exposta ou comercializada como artista para ser artista, uma pessoa já nasce em atuação. Todo nosso movimento é visto como expressivo. Caminhadas, sons, dança, gestos, afetos… a vida é a mais pura arte genuína!
Habilidades manuais (artesanatos), por exemplo, são pouco valorizados quando comercializados fora da comunidade, mas para nós toda “textura” traz em si uma teia de histórias, narrativas, vivências etc. Ou seja, o que consideramos obras de arte é considerado artesanato pelos olhos estrangeiros, desvalorizando nossa cultura.
Por que a arte indígena é menos valorizada? Por que o artista indígena é menos capaz? Meus parentes produzem e comercializam para viver e não para acumular, todavia, diante do mundo capitalista, isso tem o preço que é continuar à margem da sociedade. Outro dia, li uma matéria em jornal em que um artista havia vendido “nada”. Sim, ele vendeu nada! Ele simplesmente elaborou um super discurso defendendo a sua obra que era “nada” e oferecia um certificado aos que compravam a sua obra. O “nada” pode ter muito valor! O que vende é uma ideia que se tem sobre algo, conceitos, histórias, imagens inventadas e contadas. O problema é que estamos sobre narrativas colonialistas que nos desvalorizam historicamente.
Contudo, mesmo que haja alguma distância da textualidade como valor enunciativo que possa, para os olhos estrangeiros, desqualificar nossa cultura e desvalorizar nossa arte, para nós, a nossa anunciação está na ação em si e na oralidade. Neste sentido, sinto que o teatro é um dos poucos espaços que está mais próximo da arte indígena.
O teatro exige um contato muito mais real e genuíno do que a TV e o cinema, por exemplo, não permitindo uma edição de imagem, uma repetição da cena para escolher o melhor resultado. O teatro nos faz experimentar uma encenação mais próxima da vida real. Compartilho com vocês um trecho do texto “Quando a vida é teatralização” de Julio Adrião:
“O teatro revitaliza a pessoa que vivencia a experiência teatral – seja como ator, como diretor ou como público, porque sem público não se faz teatro. Existe uma realimentação, uma renovação de esperança, de vida (…) O teatro acaba sendo uma arte mais humana mesmo. É uma arte que não se repete, cada vez que ela acontece, por mais que seja ensaiada, acontece de uma vez.” (PARDO. 2011, p. 93)
Na busca pelo meu realismo, eu tenho por hábito, durante os meus processos artísticos, não assistir nada que possa me influenciar objetivamente. Evito referências de colegas, para não copiá-los, para não reproduzir imagens concebidas externas a mim. Embora o aprendizado seja, algumas vezes, baseado na repetição, eu acredito em uma reprodução consciente, inteligente e sensível, capaz de reconhecer o ser que reproduz em si. Assim, eu procuro buscar referências dentro de mim, nas minhas memórias, na minha educação, cultura e história.
A maior referência é a minha ancestralidade, a voz da minha mãe, sua cegueira que nos ensinava a enxergar, o caminhar do meu pai e sua expressão corporal. Esta ancestralidade está viva dentro de mim e se eu preciso reproduzir ou representar eu apresento repetidamente o que me atravessa na existência de forma sempre única.
“O fato é que é do próprio ator, dele mesmo, de sua dinâmica subjetiva, de seu corpo físico e de seu peso no espaço, é dessa musculatura, dessa sensibilidade e dessa inteligência corporal que começam a se desenhar as primeiras formas de sua presença e de sua partitura cênica.” (PARDO. 2011, p.45)
Mas, o que me ajudou a ter esse insight sobre autenticidade foi quando, assistindo a uma novela, comecei a me questionar sobre qual o limite entre ficção e realidade em atuações e personagens. Por que algumas encenações parecem reais e outras realidades fantásticas?
Já ouvi, várias vezes, outros atores (obviamente não indígenas) que preferem fazer papéis com personagens “fortes”, referindo-se a alta intensidade deste personagem. Foi quando me perguntei: o que é um personagem forte? Nas minhas referências internas, ser forte é ser frágil também. Ser intenso é saber ser leve. Porque “ser” é transitar opostos, sobretudo habitar a vulnerabilidade, se disponibilizando não apenas à ação, mas à transformação. Para tanto, uma atuação “forte”, o que eu consideraria como boa atuação, é aquela baseada na verdade do ator.
Eu me exponho em dizer que ser verdadeiro é muito difícil. Uma grande dificuldade da espécie humana é ser honesta consigo mesma, porque estamos programados para servir a nossa racionalidade, que foi educada pelas conveniências sistêmicas do mundo. Nós somos treinados a nos afastar dos nossos “defeitos”, que representam um mau caráter, e nos aproximar das “qualidades”, que agradam um modelo “civilizado” de sociedade.
Nós estamos inclinados a julgar, manipular e castrar, tanto a nós, quanto aos outros, orientados a invocar anjos e expulsar demônios. Porém, novamente eu pergunto: sob que ótica opera essa educação? O que são anjos ou demônios e para quem? Mais uma vez, parafraseando Boal, preocupo-me mais com os papéis de oprimidos e opressores de nossa sociedade, que quase não se distinguem ou se separam entre si, em meio a tanta violência dissimulada.
Ser honesta comigo foi e continua sendo o meu maior desafio como atriz e como pessoa. Contudo, a busca pela minha honestidade é a minha melhor arma para desconstrução do meu caráter e para o desapego de mim mesma. Eu descobri no teatro que eu não preciso deixar de ser um corpo indígena para ser atriz, tão pouco preciso deixar de ser eu. Sou humana, como todos e tenho características agradáveis e desagradáveis, para mim e para os outros.
Eu me apaixonei pelo teatro ao descobrir que poderia ser um corpo fértil no palco sendo eu mesma e isso se reflete na vida. Cada um de nós é único e o que temos a oferecer ninguém mais tem. Além disso, um dos maiores potenciais humanos e teatrais é a transformação. Porém, para que se mude uma forma é preciso que a reconheça bem. A desconstrução sempre me interessou. Para se desconstruir é preciso se reconhecer, para se transformar é preciso se respeitar. No entanto, tem muita gente que confunde o “desconstruir” com o “destruir”. A omissão de si mesmo, ou o desejo cego pelo que não é seu, pode nos levar à destruição.
No entanto, muito distante de fingir, porque ninguém finge ser mau, ser honesto, ou ser bonzinho, em uma encenação honesta ninguém sai de si. É impossível disponibilizar seu corpo à atuação sem ser atravessado por um “personagem”. Somos muitos e antagônicos. Somos, cada um, vários personagens. Somos todos uma peça de teatro!
Digo mais, somos capazes de uma autoapropriação integrativa, que compreende e potencializa a expressão do Ser em sua inteireza. E isto não se prova aos outros, mas se degusta em si e se apresenta. Falamos com o corpo e movemos com a fala. Na vida, ou nos palcos, os nossos processos humanos e teatrais falam por nós e se comunicam. Atores, espectadores e dramaturgos em ação na vida, compõem-se a si e transformam-se uns aos outros.
Que bom que caí no teatro e não na rua! A humanidade do teatro me atrai e me torna ainda mais humana para o mundo! O teatro permitiu-me aproximar da minha existência, das minhas formas, essências, matérias e sombras, de toda a pluralidade que faz parte da minha singularidade, permitindo conhecer-me de verdade. Atuar nos permite ser diverso sem julgamento. Eu sinto prazer em atuar! Atuar é realizar, é existir! Atuando eu me defino e me liberto! Tudo o que interpretamos somos nós. Atuando eu me aceito e me transformo. E, consciente das minhas ações, sinto-me cada vez mais capaz de agir, comunicar e transformar o mundo!
BIBLIOGRAFIA
BERTHOLD, Margot. História mundial do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2010.
BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. São Paulo: Editora 34, 2019.
PARDO, Ana Lucia (organização). A teatralidade do humano. São Paulo: Edições SESC SP, 2011.
Zahy Guajajara é do povo Tentehar-Guajajara, do Maranhão. É atriz e foi uma das porta-vozes na Ocupação Indígena Aldeia Maracanã. Atuou na minissérie ‘’Dois Irmãos’’, da TV Globo, em 2015; no cinema, estreou no longa ‘’Não Devore meu Coração” em 2017; no teatro, com a companhia Barca dos Corações Partidos, esteve no espetáculo ‘’Macunaíma – Uma Rapsódia musical’’, de 2018 a 2019; entre outros.