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Sobre falsos messias e o apocalipse real

Guilherme Foscolo

“Pessoal, esse é o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán. E por que eu vou falar dele? Porque a Hungria é um exemplo de sucesso – de muito sucesso”, diz Eduardo Bolsonaro na terceira CPAC Brasil, realizada em junho de 2022 (braço brasileiro da estadunidense Conservative Political Action Conference), apontando para uma imagem que exibe o próprio deputado à esquerda e o primeiro-ministro da Hungria à direita. Descontraído, como se falasse para um público de cupinchas, Eduardo Bolsonaro reproduz a palestra de Viktor Orbán para a CPAC Budapeste (realizada em maio de 2022)e que contou também com a participação virtual do deputado brasileiro em sua cerimônia de abertura. Orbán já foi chamado por Steve Bannon – estrategista digital do ex-presidente estadunidense Donald Trump – de “Trump antes de Trump”: não surpreende, portanto, que as suas doze regras para cristãos conservadores alcançarem e consolidarem o poder ressoem a práticas e projetos também comuns aos governos Trump e Bolsonaro. Após passar rapidamente pelas três primeiras regras, Eduardo Bolsonaro diz: “e aqui a parte que eu mais gosto: tenha a sua própria imprensa”. Sobre aquarta regra, prossegue:

o Viktor Orbán, ele apanhava muito da imprensa esquerdista militante, tal qual o Jair Bolsonaro aqui no Brasil. E como é que essa realidade foi mudada? Foi mudada porque milionários húngaros ou eles compraram essas imprensas ou eles abriram as suas próprias. Então, o que era majoritariamente ataque, ou aquela crítica construtiva contra o seu governo, passou a dar voz a sua visão de mundo. Colocou no debate os problemas reais da população. Não ficava só naquele blábláblá esquerdista né […] esses caras ficam torcendo contra o Brasil. […] as tias do zap tiram o sono desses caras. Elas é que estão fazendo essa verdadeira revolução.

A fala atravessada de Viktor Orbán por Eduardo Bolsonaro revela um núcleo de sustentação capaz de transubstanciar – para a própria Hungria de Orbán, os Estados Unidos de Trump e o Brasil de Bolsonaro – “sua visão do mundo” (a visão governista)em “problemas reais da população”. Este núcleo depende de um conglomerado contemporâneo de tecnologias digitais que tenho chamado “fábrica de hiperstição e que se trata de um sistema autopoiético de retroalimentação positiva cuja dinâmica interna alterna entre a produção de uma metanarrativa e a instanciação desta metanarrativa em memes. Os ataques orquestrados às mídias tradicionaisinclusive as respostas da própria imprensafuncionam como iscas/atratores para a órbita tecnológica própria do ecossistema de informações constitutivo da “fábrica”. É importante ressaltar que as informações veiculadas pelo ecossistema não são exatamente imunes/contrárias à exterioridade; mas são imunes aos efeitos negativos do real que, porventura, poderiam servir de contraponto à metanarrativa que se produzdesde dentro (apontar para a negatividade/aquilo que no real oferta resistência = “torcer contra”). Isso porque o que operam é a fabricação de uma realidade própria que possui autossustentação, ou seja, que se ressignifica continuamente a partir da órbita ficcional– na mesma medida em que se cumpre (ela sempre se cumpre) no real. Se a opinião pública, nesse sentido, converte-se em opinião do algoritmo elemento comum/material da constelação tecnológica que possibilitou a ascensão do neofascismo;a sua contraparte “poiética constitui-se em um imaginário que compartilha – em Trump, Orbán e Bolsonaro – de alguns elementos fundamentais. Um desses elementos, como já se deve antecipar, trata-se do mito do messias.

Com o trumpismo, a fábrica produziu a metanarrativa de uma rede satanista global (de pedofilia, tráfico de órgãos e de crianças) – composta por uma elite política/econômica/cultural ligada ao partido democrata – e que teria se infiltrado na estrutura do próprio Estado. Trump emergiu, assim, como única liderança disposta aexpor e punir essa suposta rede. O documentário recente do apresentador da Fox News,Tucker Carlson Hungary vs Soros: The Fight for Civilization (2022) , materializa a metanarrativa antissemita da Hungria como um paraíso conservador que resiste às investidas de George Soros nas palavras do próprio Orbán, convertido em líder do último bastião da civilização ocidental cristã, “a Hungria é uma nação antiga, orgulhosa, mas do tamanho de um Davi, que se posiciona sozinha contra um Golias woke e globalista. No Brasil, por fim, o bolsonarismo constitui-se na metanarrativa de enfrentamento ao comunismo (sua contraparte analógica está nas centenas de páginas do Orvil – libelo militar resgatado por João César de Castro Rocha que propõe narrar averdadeira história do Brasil apagada por uma frente intelectual de civis esquerdistas),em que o próprio Bolsonaro é ungido por um messianismo neopentecostal como o escolhido/único capaz de fazer frente ao projeto de uma suposta esquerdaglobalista/anticristã. Nos três casos, é indispensável a participação de alguma forma de um ultranacionalismo cristão; daí a produção de um maniqueísmo escatológico que culmina na possibilidade da salvação; e, por fim, na emergência do líder como um herói messiânico.

O ultranacionalismo cristão costura transnacionalmente uma agenda reacionária comum a partir do slogan “Deus, Pátria e Família” (tema, a propósito, da CPAC 2022 em Budapeste) – e que, na prática, traduz supostos valores cristãos em hostilidade aos direitos LGBTQIA+, das mulheres e grupos minorizados, racismo e xenofobia (a promessa de campanha de Trump em 2016 – de construir uma muralha na fronteira México/EUA – possui lastro na cerca construída pelo próprio Orbán em 2015 na Hungria, alegadamente uma medida contra os imigrantes muçulmanos) etc. Quanto aos efeitos desastrosos da fábrica, a tragédia individual (de fiéis e não fiéis) retroalimenta as unidades tecnológicas – Instagram/ Twitter/ Facebook/ Telegram/ WhatsApp/YouTube/ Tiktoke se converte em tragédia coletiva: o que ocorre tanto por vias eleitoreiras (elegendo o messias e apoiadores da ocasião) quanto, quando o destino não se manifesta, pelo seu questionamento (a invasão do Capitólio em 2021 aparece, assim, como a resposta da fábrica à negativa do real: a explosão de violência de massa reafirma a própria hiperstição contra o “destino” que lhe é negado).