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Reivindicações históricas e contemporâneas do povo Mapuche com base na obra de Kimvnteatro

Paula González Seguel
Diretora teatral, Dramaturga e Documentarista
Diretora Artística do KIMVNTeatro

Nasci em El Bosque, periferia de Santiago do Chile. Tenho origem indígena por parte de mãe, minha bisavó era uma autoridade ancestral do povo Mapuche. Ela era uma machi (xamã), uma mulher que se dedicava a curar através de plantas, rituais e medicina ancestral. Formei-me como atriz na Escola de Teatro da Universidade Mayor, no Chile, em seguida em direção teatral com Alfredo Castro no Teatro de La Memoria e cursei mestrado em Cinema Documental na Universidade do Chile. Sou diretora artística da companhia Multidisciplinar KIMVNTeatro, dedicando, por 13 anos, o resgate da memória, da oralidade e da defesa dos direitos humanos do povo Mapuche por meio da arte.

Desde a minha infância, tive um forte vínculo com a arte, formando-me em música clássica e folclore latino-americano, porém com um grande desconhecimento de minha identidade Mapuche. Somente aos 14 anos de idade, encontrei-me com minha origem, a partir de uma viagem a Puerto Saavedra – região de Aracaunía, Chile – convidada por minha tia materna, Gloria Mercado Treumun, professora intercultural.

Nesta viagem, tive a possibilidade de ficar em uma comunidade Mapuche, ser testemunha da recuperação territorial, da resistência das comunidades e escutar um Ülkantun (canto ancestral) de um avô da comunidade no interior de uma ruka (casa), residência tradicional do povo Mapuche, no sul do Chile. Esta experiência foi extremamente comovedora para mim, já que, pela primeira vez, me dava conta que em nosso país existiam pessoas que falavam outra língua e que ainda se conserva viva nessa comunidade.

Minha família materna, de origem Mapuche, silenciou o mapuzungun, língua ancestral do povo Mapuche, devido à forte negação da identidade indígena no Chile, produto da violência histórica exercida contra as nações preexistentes ao Estado Nação. Durante grande parte de minha infância e adolescência não tive acesso ao conhecimento ancestral, até iniciar a recuperação da memória de meus antepassados por meio do Teatro. E assim, por desconhecimento de minha identidade Mapuche, mas com uma forte convicção política, começo em meu último ano de formação em Artes Cênicas, no ano de 2008 – com a minha irmã Evelyn González Seguel (Psicóloga e Compositora Musical) e companheiras da escola de Teatro – a recuperar a memória de minha avó materna, Elena Mercado Marileo, filha da xamã Rosa Marileo Inglés, e não só dela, mas de um grupo de mulheres de distintas gerações pertencentes a comunidade Petu Moguelein Mawidache, em El Bosque que, após um complexo processo de migração do campo para a cidade, fixou-se nas periferias de Santiago do Chile, na década de 1950.

Durante aproximadamente um ano escutamos suas histórias, recuperando o mapuzungun (canto ancestral), as danças, compartilhando uma roda de pães e mate para a criação da montagem “ÑI PU TREMEN – Mis Antepasados”, obra-prima de minha companhia. Esta obra é a semente de toda criação do KIMVNTeatro, companhia multidisciplinar que há 13 anos tem se dedicado através do Teatro Documental e Música, legitimar demandas ancestrais e contemporâneas do povo Mapuche.

A partir desta primeira experiência cênica, a companhia começa a focar nas seguintes criações problemáticas como a expropriação territorial, a legitimidade da luta pela recuperação territorial no sul do Chile, a violação dos direitos humanos frente ao povo Mapuche, no período da ditadura cívico-militar de Pinochet e nos períodos democráticos, assim como a militarização e violência sistemática contra as comunidades Mapuche resistentes no sul do Chile.

Em nossa segunda encenação, a obra “Territorio Descuajado. Testimonio de un país mestizo”, entramos na realidade vivida na residência urbana de Elsa Quinchaleo Avendaño, mulher Mapuche, mais velha, que migrou muito jovem para a cidade em busca de oportunidades de trabalho. Neste espaço cotidiano, na casa de Elsa, fomos nos dando conta de sua realidade, da pobreza, do analfabetismo, entretanto do valioso conhecimento la papay (avó) que ainda se mantém vivo, a linguagem mapuzungun, a conexão com seus sonhos (peuman) e liderança em sua comunidade Mapuche Urbana Petu Moguelein Mawidache. Elsa Quinchaleo é atriz e Ülkantufe (Cantora) de sete encenações de KIMVNTeatro, fomos testemunhas de seu silêncio, de suas dores, de sua raiva, das suas alegrias, da sua ternura e de sua grande capacidade de resiliência por meio da arte.

Assim, nessa encenação, tivemos a possibilidade de acessar o testemunho de Lonko Juana Calfunao Paillalef, líder Mapuche, que esteve presa por cerca de quatro anos pela Lei Antiterrorista, sofrendo, no cárcere, tortura por parte dos policiais, aborto de um bebê que esperava e paralisias em seu rosto. Ela, como muitas e muitos membros das comunidades Mapuche, tem sido vítima de violência estatal contra o povo Mapuche, vivendo cotidianamente a invasão de suas comunidades e sendo vítimas da repressão Estatal.

Durante os primeiros seis anos de criação e investigação junto ao KIMVNTeatro ou Teatro KIMEN, como nós chamávamos no início da companhia, nosso olhar estava focado nos aspectos autobiográficos, nos planos íntimos para a criação, desde um âmbito familiar, questionando a minha própria história para escavar nesses intervalos e espaços vazios o conhecimento ancestral do povo Mapuche. Em nível territorial, nosso olhar estava focado nas problemáticas urbanas decorrentes dos processos de migração campo-cidade, observando as violências que aconteceram a minha família durante a ditadura cívico-militar, como foi a tortura vivida por parte de familiares de origem Mapuche no sul do Chile: o exílio forçado, a ausência e a morte.

Em 2016, após dois anos de recesso criativo, nosso olhar começa a se focar em Wallmapu, direção Sul do Chile, onde saímos de nosso território mais próximo, começamos processos de observação de campo e trabalho etnográfico em Wallmapu, território Mapuche, buscando relatos que nos permitissem continuar reconstruindo a história de nosso povo por meio do Teatro. E aqui, conheço Blanca Melin, uma mulher Mapuche que me recebeu durante três dias em sua casa, para compartilhar comigo parte de sua história: a violação de direitos humanos vivida por seu pai durante a ditadura de Pinochet, o medo constante dos controles excessivos dos policiais em seus territórios e a importância do trabalho que as mulheres ocupam na resistência do atual povo Mapuche, tanto em Wallmapu (Território Sul do Chile), como em Warria (cidade).

E assim, começamos a aventura de criar “ÑUKE. Um olhar íntimo sobre a resistência Mapuche”, montagem que estreou no interior de uma ruka, no ano de 2016, no lado de fora do Centro Cultural Estação Mapocho, em pleno centro da cidade. Este trabalho nos levou a experienciar, desde a encenação, o medo constante vivido pelas família no sul do Chile contra a militarização dos territórios em plena democracia, observamos a situação de horror diária devido aos constantes ataques às comunidades Mapuche em resistência, fomos testemunhas da grande quantidade de população Mapuche que habita a região metropolitana falante do mapuzungun, público de nossas obras, e vimos o grande desconhecimento da população chilena que existia até aquela data, ano de 2016, sobre a repressão vivida pelas comunidades indígenas no sul do Chile

A violência, desde 2016, tem sido uma temática abordada em nosso trabalho, nos obrigando a buscar todos os dias a espiritualidade do povo Mapuche e o küme mongen (bem viver), que tem sido a única maneira de focar as problemáticas tão fortes como tem sido a violência do Estado contra a população Mapuche: mulheres, homens, meninos e meninas no sul do Chile.

A ruka, como dispositivo cênico, nos levou a trazer um pedaço do Sul a Santiago do Chile, capital, dando visibilidade à violação dos direitos humanos em espaços tão relevantes como o Museu da Memória e Direitos Humanos e o Sítio de Memória Villa Grimaldi, ambos espaços dedicados a manter viva a memória em relação à violação dos direitos humanos vivida por centenas de chilenos e chilenas durante a ditadura cívico-militar, a qual ainda mantém suas feridas abertas no país, e principalmente depois do que se viveu desde 18 de outubro de 2019 no Chile, com a “Revolta” ou “Surto Social”.

“Na vida política, certamente parece que primeiro se produz uma injustiça e então uma resposta a ela, mas pode ser que a resposta seja produzida enquanto a injustiça ocorre, e nos proporcione outro modo de pensar sobre os feitos históricos, a ação, a paixão e as formas de resistência. Parece que sem sermos capazes de pensar sobre a vulnerabilidade não podemos pensar sobre a resistência, e ao pensar sobre a resistência já começamos com o propósito – precisamente – de resistir.”

Realizar um exercício de memória depois de uma grande revolta social no Chile não tem sido fácil, uma vez que, durante os últimos anos, nosso trabalho se focou no ato de resistir contra uma história sem raízes, contra o silêncio e a negação da identidade indígena de um país, contra a vulnerabilidade dos direitos humanos. KIMVNTeatro, a companhia que dirijo, com 13 anos, tem ocupado distintas trincheiras para denunciar, por meio das Artes Cênicas, o genocídio histórico contra nossas comunidades. E a revolta social de outubro fez visível as práticas repressivas por parte do Estado, não só com a comunidade Mapuche, mas com todos aqueles que estão insatisfeitos com o sistema econômico e político neoliberal. América Latina e o mundo têm visto seus sistemas quebrarem, somos protagonistas da ameaça à vida humana por uma pandemia mundial e o esquecimento foi, nesse último ano, um mecanismo de defesa contra a vulnerabilidade que sinto como mulher, artista e ser humano.

“A vulnerabilidade pode surgir dentro dos movimentos de resistência e da democracia precisamente como uma mobilização deliberada de exposição corporal. Sugeri anteriormente que tínhamos de lidar aqui com dois sentidos do termo resistência: resistência à vulnerabilidade que pertence a certos projetos de pensamento e certas formações políticas organizadas por um domínio soberano e vulnerabilidade como parte do próprio exercício de poder.”4

As nações preexistentes neste território ao sul do mundo, durante os últimos anos, têm abraçado as artes, já que elas colocaram a linguagem e uma história eterna de invisibilidade em espaços de dignidade. A arte, em Wallontu Mapu (todo o território), tem sido uma grande aliada na luta e resistência dos povos. KIMVNTeatro é um dos tantos coletivos artísticos, que desde os anos 90, tem andado de mãos dadas com um grande movimento político que busca a restituição de terras ancestrais, a reparação do genocídio indígena vivido neste lado do mundo e que busca o reconhecimento e a legitimidade de demandas históricas.

A luta Mapuche, no entanto, é múltipla e diversa; tem lutado pela recuperação territorial, por direitos linguísticos, por uma educação intercultural, pelo respeito à vida e à terra, pela liberdade de presos políticos e pelo direito à autonomia. KIMVNTeatro é uma companhia que tem sido Werken (mensageira) da história Mapuche, por múltiplos olhares e artistas, e a história que se escreve hoje no Chile e Wallmapu, não deixa de nos surpreender, já que, em muitas de nossas dramaturgias, os eventos que acontecem em nossa encenação estão vivos e aparecem em todos os territórios e lugares remotos do sul do mundo.

Para finalizar, gostaria de agradecer a todas e todos os artistas, espaços culturais, comunidades, minha família, por abraçar nossa caminhada, nossa luta e resistência por meio da arte e gostaria de seguir sonhando que ao recuperar o conhecimento ancestral, podemos também recuperar o sentido invisível de nossa existência.

Paula González Seguel, diretora, dramaturga, docente, documentarista e gestora cultural. Fundadora e diretora artística da Cia. KIMVN Teatro, dedicada ao resgate da memória, oralidade, linguagem, visão de mundo e cultura do povo Mapuche e da defesa dos direitos humanos através das artes cênicas, da música e do cinema.

O testemunho oral, a investigação de campo e os cruzamentos interdisciplinares, levaram KIMVNTeatro a criar cenas que resgatam o espaço íntimo, cotidiano e familiar para o povo Mapuche, em todas suas dimensões e complexidades. Paisagens urbanas e rurais foram trazidas para o palco, tanto na construção cenográfica como na criação de imagens visuais e sonoras, com o intuito de resgatar a realidade como documento histórico e político de várias áreas da teatralidade. A linguagem documental tem a capacidade de indagar e dar visibilidade a aspectos invisibilizados da sociedade, um espaço de indagação cênica para a criação de diversas montagens vinculadas à problemáticas sociais, políticas e culturais que têm afligido de maneira histórica e contemporânea o povo Mapuche. As estéticas das montagens da companhia resgatam o que está à margem, na recordação, no passado e na memória, com o intuito de ressignificar, dignificar e centralizar a beleza que se esconde por trás da pobreza, a marginalidade, a violência e a dor. Fonte: HYPERLINK “http://www.kimvnteatro.cl”www.kimvnteatro.cl

“Povo originário cuja existência data de mais de 14 mil anos de existência, cujo território se estende desde o que hoje conhecemos como Coquimbo até Chiloé, e desde o Oceano Atlântico até o Oceano Pacífico, quer dizer, atuais Chile e Argentina, território que constitui o que se domina Wallmapu. Seu idioma é o Mapuzungun que contém distintas variantes dialéticas determinadas pelas territorialidades. O povo Mapuche desenvolve distintas manifestações culturais que constituem seu Patrimônio Imaterial (Língua, têxteis, cerâmica, ourivesaria, construções arquitetônicas, astronomia e filosofia, agricultura etc.). A Coroa Espanhola frente à forte resistência deste povo ante sua tentativa de subjugação colonial e invasão, teve que reconhecê-lo, dando o caráter de Nação, estabelecendo fronteira territorial o Rio Bio-Bio ao sul e reconhecendo sua autonomia (Parlamento de Quilín,1641). Posteriormente, os Estados Chileno e Argentino, através de seus exércitos, em um processo etnocida conjunto, conhecido com os eufemismos de: “Pacificação de Araucanía” (Chile) e “Campanha do Deserto” (Argentina) invadiram ilegitimamente o território Mapuche, aniquilando com sua gente, usurpando terras e anexando-as ilegalmente a seus territórios, sendo ocupadas mais a frente por colonos Europeus, que foram trazidos e suas estadias subsidiadas por estes Estados (1860-1881).  Este processo trouxe consigo pobreza, desarticulação cultural e social, deslocamentos e migrações forçadas, desencadeamento de perda identitária, entre outras coisas, pela forte discriminação frente as pessoas pertencentes a este povo. Hoje em dia, existe uma reivindicação territorial e cultural Mapuche para reestabelecer os direitos políticos ancestrais e patrimoniais que por anos foram negados pelos Estados do Chile e Argentina. Desta maneira, se atua para reconstruir o povo como uma Nação autônoma que foi em algum momento. Fonte: www.kimvnteatro.cl

Ruka ou casa, corresponde a construção arquitetônica mais importante do povo Mapuche. Esta casa tem uma forma cônica com uma base circular com divisões apenas para os dormitórios, construídas a partir de materiais de origem vegetal. Interiormente, sua estrutura contém de dois a três pilares grossos, geralmente de carvalho, reforçado por pedras. Seu revestimento externo é feito de palha, fibras de cana, coco e taboa, servindo como isolante térmico e proteção contra as chuvas. Possui bambus que formam uma rede rígida que serve de suporte para a palha. O solo, geralmente, é de terra e sua porta deve estar sempre voltada para o nascer do sol. A ruka é o centro de encontro familiar e social Mapuche e seu espaço se organiza em torno do al küxal o küxalwe (fogo). Fonte: HYPERLINK “http://www.kimvnteatro.cl”www.kimvnteatro.cl

“Resistências”, livro de Judith Butler. Paradiso Editores, 2018, México.