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Que os mortos tenham direito de votar

Vladimir Safatle

Essa é uma das mais belas passagens de Jacques Lacan. Trata-se do momento em que ele descobriu haver algo pior que a morte. Pior que a morte havia a morte da morte, havia o ato de matar a morte, ou seja, impedir que a morte pudesse ocorrer, com seu luto, com seu acolhimento simbólico, com seu dolo, com seu dever de memória. Nesse caso, era como se sujeitos fossem mortos pela segunda vez. Não só a morte física mas uma ainda pior, ainda mais brutal: a morte simbólica.

O momento em que ele a percebe não poderia ser mais sintomático. A França era uma potência colonial em guerra, corpos de argelinos que lutavam pela independência apareciam no mar depois de serem torturados. Os corpos daqueles que não queriam mais ser colonizados desapareciam sem que suas famílias pudessem enterrá-los. Sua morte era roubada de suas famílias, pois “desaparecer” é não saber onde alguém está, se está vivo ou morto, se um dia voltará ou se foi em definitivo.

Essas técnicas usadas nas chamadas “guerras contrainsurrecionais” serão exportadas anos mais tarde para a América Latina. Nos anos 1970 encontraremos, por exemplo, o torturador francês Paul Aussaresses, o mesmo que organizava sessões de tortura e assassinato em Argel, ensinando aos militares brasileiros como matar a morte, como desaparecer corpos sem deixar traço. Na plateia estavam esses que nos governam hoje. Ouviram atentamente, anotaram copiosamente as “técnicas”, aplicaram-na nos que lutaram contra a tirania. E, mesmo depois de derrotados, levaram a sociedade brasileira a se calar diante de seus crimes, pois, afinal, haviam sido “anistiados”, o que em bom português significa: os criminosos perdoaram a si mesmos. Não haveria julgamento, ou seja, eles poderiam voltar a qualquer momento.

Então eles voltaram, e voltaram no momento em que o mundo passava pela pior pandemia mundial. Como alunos aplicados, lembraram-se do que aprenderam e aplicaram as técnicas da guerra contrainsurrecional em toda a população brasileira. Técnicas que ensinam que impedir o dolo, desumanizar os mortos e circular a indiferença como afeto social central é a melhor coisa diante daquilo que pede a existência do Estado, a saber, a guerra e a pandemia.

O Brasil viu então o horror de um governo que lutava contra a vacinação de seu próprio povo, que zombava de suas mortes, que sabotava as tentativas da sociedade de se autodefender, que escondia números, que “desaparecia” corpos enquanto fazia de tudo para preservar os rendimentos da elite rentista, do sistema financeiro, dos empresários da corte. Um governo que matava a morte. O resultado foi inapelável: mesmo levando em conta apenas os números incertos que conseguimos levantar, descobrimos que tínhamos 3% da população mundial e 15% das mortes por covid no mundo.

Há pessoas que gostam de repetir que números não mentem. Bem, pessoalmente não tenho um fetiche dessa monta pelas “verdades numéricas”. É possível fazer números mentirem, mas há momentos, há de se reconhecer, em que os números são brutalmente explícitos e não conhecem “interpretação” de nenhuma sorte. Não há nada a dizer quando um país que tem 3% da população mundial é responsável por 15% das mortes por covid. Nada a dizer a não ser: quem nos governava à época merecia ser afastado naquele momento, ser objeto de impeachment. Era simplesmente parte do problema. E não foram poucos os que lutaram por isso.

No entanto, eis que eles continuam e, anos depois, ameaçam ser reeleitos. Uma reeleição que significaria jogar na vala comum todos os que morreram por irresponsabilidade e indiferença do Estado, deixar seus corpos sem sepultura apodrecendo a céu aberto. Corpos sem memória. Significaria o crime aterrador de esquecer e perdoar quem os matou, não uma, mas duas vezes. Os gregos tem uma bela tragédia, Antígona, a respeito do que deve (e esse “deve” está aí por rigor) ocorrer quando uma sociedade vê como possível matar duas vezes alguém. Ela deve desaparecer. Ela perdeu toda e qualquer substância ética, é só uma associação de “assassinos sem maldade e vítimas sem ódio”, como dizia Günther Anders.

Por isso, amanhã não votarão apenas os vivos, votarão também os mortos. Ressurretos por um momento, eles segurarão a mão da insanidade como quem diz: “Nós não seremos mortos uma segunda vez.” E será essa ressureição dos mortos que salvará o que sobrou de nossa sociedade brasileira, que nos permitirá começar a construir outra sociedade a partir dos escombros dessa que já terminou. Nesses paradoxos tão estranhos quanto belos, quando uma sociedade se encontra no seu mais profundo perigo, são os mortos que nos salvam, é sua força de não se deixarem esquecer que preserva a abertura de nosso futuro. Quando estivermos na cabine de votação, não estaremos sozinhos. Haverá 700 mil pessoas votando através de nosso gesto. Há momentos em que uma eleição é apenas uma eleição. E há momentos em que uma eleição é o gesto derradeiro de uma sociedade que usará da força de seus mortos para forçar as portas cerradas do futuro.