Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada
Breve resenha por Josy Panão
Para escrever Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada, Suely Rolnik colocou o ouvido no chão a fim de escutar o tropel das forças que se aproximam. Ao nos oferecer esse livro, ela nos convida a fazer o mesmo.
Dona de um verdadeiro ‘ouvido absoluto’, para além dos sons que ressoam ao nosso redor, Rolnik consegue escutar as forças insurgentes em nosso corpo e, com suas melodias caoticamente harmônicas, compor políticas do desejo que musicam outros mundos possíveis – ainda que o ruído ensurdecedor das cavalarias reacionárias impeça a audição e nos queira fazer ignorantes de nossa própria capacidade de escuta.
Hoje (e sempre!), o Brasil – e, mais amplamente, a América Latina – é um mar revolto; difícil não sucumbir estando aprisionados nesta nau à deriva. Poucas pessoas conseguem, como Suely Rolnik, ouvir tão bem as ondas que arrebentam nesse mar e serem tão certeiras na leitura de seus efeitos na terra em que vivemos. Com sua escuta psicanaliticamente aguçada e sua leitura, por vezes xamânica, quando ela volta seus olhos para os processos colonizatórios do final do século XV – que expropriaram não só as terras e as riquezas do continente americano, mas também a alma e a vida da quase totalidade de seu povo –, ela consegue dissecar com precisão cirúrgica os meandros colonizantes e também os insurgentes que formam nossa subjetividade latina e planetária. Com destreza admirável, ela analisa as micropolíticas que nos compõem e nos orientam, desde as mais ativas até as mais reativas.
Muitos metem a mão nessa cumbuca e colaboram na tentativa de decifração dos ventos da existência (cada qual a sua maneira e oferecendo o melhor de si nessa empreitada), mas são poucos os que, como ela – que esmiúça as subjetividades contemporâneas, as forças que atuam sobre elas e os modos de subjetivação que nelas predominam –, são capazes de decifrar o clima sinistro que nos assola, e que vem devastando a paisagem planetária. Em seu ensaio Inconsciente colonial-capitalístico, primeiro capítulo deste livro, Suely retoma os processos de colonização, desde sua fundação, para analisar suas peculiaridades com a financeirização neoliberal e globalitária, que se expande no conjunto do planeta e investe cada vez mais nas políticas do desejo, expropriando, abusando e cafetinando a própria vida em todas as suas esferas.
Ao olhar para esse fenômeno global, com a coragem que só tem aquele que confia na vontade de perseveração da vida, Suely nos mostra que para resistir à violência – tanto a do abuso das forças vitais, quanto a de sua ação sedutoramente perversa que nos fascina e nos torna seu cúmplice por livre e espontânea vontade – precisamos buscar aliados que nos ajudem a desertar do papel que desempenhamos no teatro fantasmático que se impõe à imaginação e que nos mantém cativos às suas cenas e ao seu enredo.
Ao compor as tessituras dessas Esferas da insurreição, Suely consegue nos fazer entender muito claramente que macro e micropolítica, em suas dessemelhanças, são movimentos que, embora a-paralelos, se dão simultaneamente e são entrelaçados. Ela nos mostra que se há uma possibilidade real de insurgência, esta deve se dar em ambas esferas, pois insurgir-se em apenas uma delas faz com que tudo volte para o mesmo lugar.
Afinando ainda mais sua leitura e sua escuta, Suely consegue antever e descrever de maneira desenvolta e original a nova modalidade de golpe que vem devastando a frágil paisagem democrática do Brasil e, para além dele, a de todo continente latino-americano. Para isso, ela se detém nos acontecimentos que agitaram e continuam agitando estes contextos desde a crise econômica mundial de 2008: as movimentações que culminaram na destituição de Fernando Lugo da presidência da República no Paraguai, em 2012, e, em seguida, as que culminaram na destituição de Dilma Rousseff da presidência da República no Brasil, em 2016 e, mais recentemente, as que culminaram na prisão espetacular e especulatória do ex-presidente Lula, em 2018.
O mundo, segundo Suely Rolnik, pode ser como uma fita de Moebius, sem dentro nem fora, sem início nem fim, e habitá-lo é estar constantemente provocando cortes em suas paisagens, seguindo caminhos que podem levar tanto a uma vida encapsulada em quadrículas estabelecidas na cartografia social vigente (micropolítica reativa/mísera vida) quanto àquela que, ainda que com esforço constante para escapar deste encapsulamento, consegue compor com as sinuosidades interrogantes das estradas invisíveis e indizíveis que se apresentam ao saber-do-corpo para criar novas visibilidades e novas linguagens (micropolítica ativa/vida nobre).
Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada não é um tratado messiânico que nos promete a redenção e uma vida amenizada. Este livro soa mais como um ritual xamânico, que propõe a imanência das forças do mundo em nossos corpos, e nos ajuda a habitá-la, buscando aliados e cúmplices para resistir ao abuso da vida. Mais do que dez sugestões para uma contínua descolonização do inconsciente, Suely nos ensina a colocar nossos ouvidos no chão para, com ela, aprendermos a escutar as vibrações dos afetos – efeitos das forças em nós mesmos – e a nos deixarmos conduzir pelos futuros que neles se anunciam.