Por trás de cada caso clínico na Palestina, está a ocupação – Entrevista com Samah Jabr.
Fonte: Arquivo pessoal
Este texto é parte de um projeto editorial construído em uma parceria entre o coletivo desorientalismos, a n-1 edições e o Núcleo Psicanálise e Laço Social no Contemporâneo (Psilacs) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Uma seleção de textos que aborda a Questão Palestina em um diálogo com a Psicanálise e outras áreas do conhecimento, como a História, Filosofia, Sociologia e Saúde Mental. A cada quinze dias, um novo texto será lançado.
No dia 18 de agosto de 2024, o coletivo desorientalismos teve a oportunidade de entrevistar remotamente a psiquiatra palestina Samah Jabr. A ideia surgiu durante sua vinda ao Brasil em junho daquele mesmo ano para a realização de conferências e debates sobre o impacto do genocídio da população Palestina e o efeitos na saúde mental em teritórios colonizados. Na ocasião, foi também lançado o livro Sumud em tempos de genocídio (Ed. Tabla, 2023) e foram realizadas exibições do documentário Derriere le fronts (Alexandra Dolls, 2017), sobre o trabalho de Samah Jabr e a resistência do povo Palestino. Na entrevista, Samah comenta uma série de questões sobre a saúde mental e suas relações com a violência colonial, e as especificidades do caso palestino. A psiquiatra palestina aborda questões sobre as perspectivas ocidentais de saúde mental, apontando a fragilidade da perspectiva política e ética dessas teorias para pensar as situações de violência colonial que encontram um ponto crítico na Palestina, mas permanecem e deixam suas marcas e feridas em todo Sul Global.
Samah Jabr é psiquiatra e psicoterapeuta palestina. Desde 2016, é chefe da unidade de Saúde Mental do Ministério da Saúde da Autoridade Nacional Palestina (ANP). Autora de diversos livros e artigos traduzidos em inglês, francês, italiano, português, turco entre outros. No Brasil, Jabr lançou o livro em junho de 2024.
desorientalismos: Nos últimos dois meses, desde seu retorno à Palestina, toda a situação parece ter piorado muito. Houve uma intensificação dos ataques israelenses em Gaza e na Cisjordânia, mas também em outros territórios, como o Líbano, além do assassinato de Ismail Haniyeh. Além disso, há a disseminação da poliomielite em Gaza, acusações de estupro nas prisões israelenses, entre outros. Poderia comentar um pouco sobre essa intensificação e em como isso se refletiu em sua clínica?
Samah Jabr: É verdade, essa é uma observação precisa. Há uma intensificação ou maior exposição dos crimes hediondos que estão sendo perpetrados como, por exemplo, crimes de tortura e estupros, que estão vindo à tona agora. Essa intensificação também nos faz perceber o silêncio prolongado da comunidade internacional e sua ineficácia e reações disfuncionais que não conseguiram impedir isso. As observações clínicas continuam. Acredito que por trás de cada caso [clínico] é possível perceber a ocupação escondida em algum lugar. Há histórias de pessoas que foram forçadas a demolir suas casas com suas próprias mãos. História de um adolescente que está se tornando indisciplinado porque o pai está preso. As pessoas não vêm e apresentam o caso atribuindo [sua questão] à ocupação. A mãe vem e fala sobre seu filho travesso que não a ouve, que lhe causa muitas dores de cabeça, com problemas de comportamento. Então, quando você ouve a história, percebe que há uma mudança no comportamento do menino após a prisão de seu pai. Portanto, continuamos observando, ouvindo, recebendo essas pessoas na clínica e ouvindo suas histórias.
Anteriormente, descrevi casos de distúrbios alimentares. Ontem, atendi um caso de anorexia nervosa “normal”, mas ela explicou que as coisas pioraram quando houve um pico de fome e das terríveis condições em Gaza. Isso piorou sua condição, embora ela tenha começado a apresentar os sintomas antes da guerra. Há também a percepção de que as coisas se agravaram, há mais incerteza sobre a vida cotidiana na Cisjordânia e em Jerusalém. Zaynab [Hinawi, psicóloga que trabalha junto com Samah e a acompanhou em sua viagem ao Brasil] e eu tivemos que cancelar alguns trabalhos por causa das ameaças de bombardeios e de uma [possível] reação do Irã ou do Líbano após o assassinato de líderes da resistência no Líbano e no Irã.
desorientalismos: A senhora disse na coletiva de imprensa aqui no Brasil que, em momentos de crise, quando nós, profissionais de saúde mental, não somos capazes de fazer nosso trabalho adequadamente, em condições normais, devemos olhar para as pessoas e aprender com elas e como elas encontram maneiras de lidar com a situação. Você falou sobre a posição radical dos profissionais de saúde de aprender com o paciente ou o usuário do serviço. Nesta crise recente, o que você aprendeu com os palestinos que é diferente ou novo em relação a outros momentos?
Samah: Primeiro, deixe-me dizer que, pela experiência de aprendizado que tive em psiquiatria e psicoterapia no Ocidente, não se é formado para tratar o tipo de trauma que vivenciamos na Palestina. Um trauma prolongado, repetitivo, deliberado, contínuo. Além disso, o trauma do genocídio é algo sem precedentes. Nunca li nada relacionado a como lidar, como fornecer cuidados de saúde mental nesse momento difícil. Aprender com o paciente é algo que me estimula o tempo todo. Desde que comecei a estudar medicina e, em seguida, psiquiatria e psicoterapia, aprender com o paciente é uma atitude para mim. Devo dizer que, na psiquiatria e na psicoterapia, o sintoma tem um significado, o sintoma conta uma história. Portanto, o significado do sintoma é importante.
Mas agora, estou exposta a um nível diferente de aprendizado. Como Gaza está tão isolada do mundo e está tão desamparada, e mesmo aqueles que querem ajudar são impedidos de fazê-lo, as pessoas em Gaza estão tentando ajudar a si mesmas. Tenho três tipos de exposição ao que está acontecendo em Gaza. Por exemplo, hoje, fiz algumas sessões on-line com pessoas de lá ou pessoas que conseguiram sair e ir para o Cairo. Elas me contaram sobre o que passaram, o que foi extremamente difícil para elas, mas o que as ajudou nesses momentos difíceis também. E aprendi com essas experiências.
Por exemplo, uma mulher que vem de uma família com boas condições financeiras, me disse que uma das coisas que aprendeu é que podemos viver com coisas mínimas. E agora, quando observa como os outros vivem no Cairo, pode ver a falta de sentido de todas as coisas e pertences que as pessoas carregam consigo. Essas foram algumas de suas reflexões sobre essa experiência.
O segundo nível de exposição e aprendizado é com os profissionais de saúde mental em Gaza. Temos um grupo chamado Mental Health and Psychosocial Group (MHPSS) aqui na Cisjordânia, composto por alguns psicoterapeutas e organizações de saúde mental que estão tentando ajudar colegas em Gaza. O diretor do hospital psiquiátrico me disse que, em um determinado momento, teve que cavar sob os escombros do hospital para conseguir alguns comprimidos para alguns de seus pacientes. E como estão ficando sem medicamentos, alguns médicos entram em contato conosco para perguntar sobre como podem ajudar e como fornecer contenção sem medicação para determinados pacientes, ou como mudar os medicamentos típicos que usavam no passado para os que ainda estão disponíveis em Gaza. Portanto, essa flexibilidade é importante. Há quatro médicos que ainda estão trabalhando em Gaza, mas eles não têm consultórios fixos. Eles mantêm um grupo de WhatsApp com seus usuários, e todos os dias anunciam sua localização para que os pacientes possam ir encontrá-los. Eles tentam gerenciar muitas coisas por meio de grupos do WhatsApp, e propusemos um sistema para apoiá-los aqui. Esse é o segundo tipo de aprendizagem com colegas que estão tentando continuar atendendo às pessoas com recursos mínimos e com muita flexibilidade, lidando com a situação. E, às vezes, eles nos falam sobre palavras de consolo. Tentam consolar as pessoas simplesmente por meio de palavras quando não têm medicação, não têm sessões regulares, porque não há lugar, mas, às vezes, algumas mensagens do WhatsApp conseguem proporcionar alguma contenção e apoio.
Um terceiro tipo de exposição é o que vejo nos vídeos que as pessoas compartilham. Elas estão tentando seguir com suas vidas apesar das dificuldades, organizando grupos onde podem contar histórias, cantar músicas palestinas, grupos para as crianças desenharem, auxiliam uns aos outros na cozinha.
Ontem assisti a um vídeo de pessoas em uma oficina para crianças que gostam de animais de estimação, no qual podem conhecer animais e apresentá-los a seus amigos. Essas são as formas orgânicas de tentar lidar com uma situação terrível. Acho que precisamos observar e aprender com isso.
Não sei se Zaynab compartilhou com você nosso trabalho com pipas. Portanto, vou lhe contar essa história brevemente. Observamos que muitas crianças em Gaza continuam brincando com pipas, apesar do fato de haver drones por toda parte.
E, em geral, as crianças de Gaza gostam de [soltar] pipas no verão. Mas este ano elas começaram em fevereiro, quando ainda estava chovendo. Então, em um dia ensolarado, havia um garoto de Al-Mawasi [Rafah]. Seu corpo ficou preso na lama porque havia muita lama ao redor das tendas. E ele estava empinando sua pipa. Estava movendo a pipa, mas não conseguia mover as pernas. E então começamos a pensar na literatura, nas músicas, nas histórias infantis relacionadas a pipas e encontramos uma infinidade de literatura e músicas que falam sobre pipas e o significado delas para as crianças palestinas. Decidimos criar uma intervenção para as crianças baseada em pipas, convidando as crianças de um determinado bairro afetado para uma oficina, na qual constroem a pipa. Eles precisam colaborar. É uma experiência de maestria construir uma pipa. E então elas podem contar algumas coisas sobre onde querem que essa pipa chegue. Que mensagens querem enviar com sua pipa? Para qual pessoa esperam enviá-la? É uma oficina de um dia. E então podem empinar suas pipas. E então ao voltar podem refletir sobre como foi a experiência.
Vocês provavelmente já ouviram falar do poema de Refaat Alareer, sobre fazer seu caixão, um caixão branco e uma pipa. Portanto, trata-se de uma metáfora importante. E acho que podemos, mais uma vez, observando o que está acontecendo e o que as coisas significam para as pessoas, quais são as metáforas e brincadeiras importantes, criar algo que seja contextualmente específico para a Palestina e para as pessoas em Gaza.
E acho que o significado da pipa é importante para muitas pessoas, não apenas para os palestinos, mas para muitas outras nações que têm restrições de movimento e que se sentem isoladas e separadas. Portanto, isso é algo que você pode levar da Palestina para o Brasil, se quiser.
desorientalismos: As pipas são muito populares nas periferias de São Paulo e do Brasil. Muito populares.
Samah: Acho que nos muros que separam o México dos Estados Unidos, também há imagens de pipas nas paredes.
desorientalismos: Estamos pensando mais sobre esse assunto, sobre aprender com aqueles que sofrem. Se puder nos contar um caso em que isso tenha sido decisivo, que tenha dado uma reviravolta no rumo do caso.
Samah: Ouça, acho que em cada caso aprendemos coisas diferentes. Lembro-me de uma pessoa, cujas palavras permanecem comigo. A família queria que eu o avaliasse para ver se ele é psicótico ou não. Porque está se isolando em seu quarto, não se mistura muito com os membros da família. E ele é diferente, politicamente e intelectualmente, dos membros da família. Ele não é necessariamente psicótico. Mas, de qualquer forma, ele me disse em um determinado momento… Vou dizer as palavras em árabe primeiro. [إذا جنّ قومك، عقلك ما بينفعك] Se sua família, se sua nação, se seu povo enlouquecer, sua mente não lhe servirá. Então, ele me disse que age como um idiota ou como uma pessoa cuja mente está ausente. Mas faz isso deliberadamente. Então, é algo para aprender sobre alienação e como uma pessoa pode parecer ter distúrbios mentais se estiver alienada.
Ontem, me deparei com um caso interessante de uma pessoa que costumava trabalhar… Ele se formou na universidade e, por alguns anos, não conseguiu encontrar emprego. Por fim, um membro da família conseguiu um emprego para ele em um serviço de inteligência palestino. E ele odiava isso. Trabalhou por alguns meses e depois desenvolveu um sintoma muito sério, uma tosse. Tossia sem parar até vomitar. E esse sintoma começou em seu local de trabalho e persistiu. E sempre que falavam com ele sobre voltar ao trabalho, ficava tossindo. E acho que o sintoma dele disse à família o que ele não podia dizer em voz alta: não quero trabalhar com a inteligência. Curiosamente, foi o lado paterno que encontrou um emprego para ele na inteligência. E do outro lado da família [o lado materno] estão os ativistas. E alguns desses ativistas são interrogados por familiares distantes, tios distantes. Assim, ele está dividido entre essa realidade política e a tensão está muito presente em sua família, e sua maneira de lidar com essa situação é simplesmente tendo esse sintoma o tempo todo, que não só o afasta do trabalho, mas também o mantém longe de alguns membros da família. Assim, quando ele os vê, quando lhe pedem para aceitar certos convites, a tosse fica cada vez pior.
desorientalismos: Você fala dos sintomas como uma forma de resistência, uma boa resistência. Então, gostaria de ouvir sobre a importância da resistência na construção dessa subjetividade e também na saúde mental.
Samah: Acho que quando as pessoas não conseguem resistir de forma direta e honesta, elas desenvolvem um sintoma, que pode mascarar esse desejo de resistir. E com esse entendimento, vemos que o envolvimento direto na resistência, a capacidade de expressar seus verdadeiros sentimentos e agir de acordo com eles, libertaria as pessoas de seus sintomas. Em nossa realidade aqui, isso não é novidade. Sabemos que o sintoma representa um conflito psíquico. Mas aqui em nossa realidade, o recalcado pode ser seus sentimentos políticos, seus sentimentos em relação à realidade política. E esse recalque pode gerar sintomas. Portanto, ou as pessoas agem de forma impotente e escondem esses sintomas, ou, se puderem agir com resistência e expressá-la, terão menos sintomas psiquiátricos, mas ficam expostas ao perigo. E pessoas diferentes fazem escolhas diferentes. Portanto, quando as pessoas querem mostrar sua subjetividade e agir de acordo com suas crenças, há consequências. E você pode imaginar que a grande maioria dos palestinos paga um preço alto por sua subjetividade. E aqueles que não o fazem correm o risco de apresentar sintomas psiquiátricos.
Não sei se estão cientes dos números recentes. Gostaria apenas de dizer algumas coisas sobre as prisões e torturas políticas na atualidade. Vocês provavelmente já ouviram falar que 20% da população palestina já foi presa por motivos políticos. Mas desde 7 de outubro, há entre 9 e 10 mil pessoas na Cisjordânia e 13 mil em Gaza que foram detidas por razões políticas. 23 mil pessoas, é muita gente. E as organizações de direitos humanos, advogados e famílias não sabem onde estão e em que condições vivem. E ouvimos relatos de tortura daqueles que são libertados, dos poucos que são libertados ou de vídeos divulgados pelos soldados. Agora, não acho que os 23 mil expressaram suas opiniões políticas ou fizeram algo. Talvez alguns deles tenham feito isso. Mas agora há muitos outros. E acho que a grande maioria foi sequestrada apenas para servir de exemplo, para intimidar o restante dos palestinos.
Portanto, essa é uma situação muito difícil e deixará muitas, muitas pessoas na Palestina com sintomas psiquiátricos graves no futuro. Há alguns estudos na Turquia que mostram que as pessoas politicamente ativas que são detidas politicamente desenvolvem menos problemas psiquiátricos do que aquelas que são detidas e torturadas acidentalmente. E acho que agora há muitas pessoas que não são politicamente ativas. Eles são detidos simplesmente porque estão em Gaza ou são de uma determinada cidade que está provocando a ira dos israelenses. Então, eles simplesmente vão e reúnem todos os homens daquela vila ou cidade. Portanto, haverá muitas pessoas que desenvolverão sintomas como consequência. Acho que essa é a pior categoria, a categoria que apresentará os piores sintomas.
desorientalismos: Então, ninguém sai ileso, certo? Porque ou você está na prisão ou está com sintomas psiquiátricos.
Samah: Sim.
desorientalismos: Isso pode fazer com que a guerra seja sobre a saúde mental também porque eles sabem que podem ferir os palestinos dessa forma.
Samah: Perfeito. Entendo que vocês dizem que uma grande porcentagem das pessoas é presa e politicamente afetada e uma grande porcentagem tem sintomas psiquiátricos porque reprime seus sentimentos e pensamentos. Traem sua mente e seu coração para sobreviver fisicamente.
desorientalismos: Eu estava pensando que isso dá um destaque especial aos problemas de saúde mental e que a saúde mental dos palestinos também são um alvo dos israelenses. Portanto, essa também é uma guerra nesse campo.
Samah: Sim, eu diria isso em outras palavras. Acho que os palestinos são visados não apenas em seus corpos, mas em seu espírito, em sua psicologia e em seus cérebros, em seus pensamentos, em sua representação, em sua identidade, de todas as formas possíveis. E o apoio à saúde mental faz parte da libertação da mente e da alma dos palestinos. Fortalecer as pessoas mentalmente, manter seu bem-estar é, de certa forma, contestar a própria ocupação e seu plano. É uma necessidade para sobrevivermos como comunidade. É o nosso ato contra o genocídio moral e o genocídio da representação do povo palestino. E eu realmente acredito nisso de todas as formas possíveis, porque, na verdade, eu iria mais longe e diria algo mais radical. Os palestinos devem libertar suas mentes de uma forma coerente com seus esforços para libertar suas terras.
Porque se as pessoas forem muito rapidamente de um estágio de ocupação e danos de todas as formas possíveis para se tornarem donas da terra, acho que poderá haver reações assustadoras. É muito importante que, juntamente com a batalha pela libertação da terra da Palestina, lutemos pela libertação da mente do povo palestino.
Tenho imagens assustadoras em minha mente de uma mudança muito rápida da posição de ser pisoteado e colonizado. É importante que trabalhemos incansavelmente, sem qualquer hesitação, na promoção de uma cultura de liberdade entre os palestinos, para que estejamos prontos. E nós estaremos prontos. Evitaremos atos de vingança. Não entraremos em um jogo retraumatizante de inverter os papéis com os israelenses.
desorientalismos: Você acha que podemos pensar em sumud com essa ideia? Sumud pode ajudar nesse caminho?
Samah: O sumud não trata apenas do bem-estar psicológico dos palestinos, mas também do empoderamento político, ação política, cuidado comunitário, compaixão entre os palestinos, manutenção das relações entre os palestinos e a solidariedade internacional. Porque sem isso, imagine que não há cultura de sumud para os palestinos e não há solidariedade internacional. E então um grupo de pessoas, como a população de Gaza, é tratada de forma tão horrível, é isolada. Imagine que um dia eles rompam o cerco e saiam desse isolamento sem nenhuma lembrança, nenhuma memória de boa conexão com o mundo. O que restaria dessa população? Não se radicalizariam mais? Portanto, a cultura de sumud, o comportamento pró-social palestino, a promoção do cuidado comunitário, esse equilíbrio entre consciência política e resiliência psicológica e bem-estar por um lado, e também a conexão e a pressão internacional, a solidariedade internacional. Isso mantém a humanidade dos palestinos e minimiza as chances de radicalização perigosa.
desorientalismos: Sobre isso, Frantz Fanon descreve a subjetividade do colonizado de forma muito detalhada. Quais são as semelhanças com o caso palestino e como você vê a construção da subjetividade colonizada na Palestina?
Samah: Primeiro, todo regime de colonização, inclusive a ocupação israelense, objetifica o colonizado e o ocupado. Até certo ponto, conseguiram encontrar fantoches entre os palestinos que têm ocupado cargos como nossos representantes há algum tempo. E se nos limitarmos a ouvir o discurso oficial, perderemos completamente nossa subjetividade. Agora, felizmente, há alguns modelos e lideranças ― não lideranças oficiais indicados pelo Ocidente e aceitos pelo Ocidente ―, mas lideranças comunitários, lideranças que são escolhidos pelo movimento de resistência palestino, que mantêm a autonomia e a subjetividade dos palestinos. E essas pessoas, não estou falando apenas de figuras ilustres, mas também de alguns, eu os chamaria de heróis, que agem em nome do grupo. E vemos, eu vejo a reação dos palestinos quando, por exemplo: há alguns anos, quatro prisioneiros palestinos, seis, Zaynab me lembra, eram seis prisioneiros palestinos que conseguiram cavar um túnel sob a prisão e fugir. Essa história tem um final triste, mas esse ato de resistência e o fato de que eles conseguiram se libertar por algumas horas é uma ação feita por certos indivíduos, mas representa o grupo. Está no nome do grupo. E liberou os sentimentos de uma grande maioria de palestinos reprimidos, desesperançados e destruídos.
Na Palestina, muitos métodos foram usados contra os palestinos para matar e destruir nossa subjetividade. Mas sempre há certos indivíduos que agem em nome do grupo que conseguiram reconstruir o que foi destruído. E isso é heroico. Para mim, esse é o significado de um herói. E acho que uma nação oprimida precisa de heróis e modelos. Eles contribuem para o bem-estar do povo e lembram a nação, porque às vezes é fácil chegar a um ponto de desesperança e desamparo. Mas sempre que há um ato heroico por parte de certos indivíduos palestinos, isso nos ajuda a recuperar nossa subjetividade e a nos recuperar da desesperança e do desamparo. Portanto, sou muito grata. Sou realmente muito grata pela contribuição heroica de alguns palestinos.
Acho fascinante que, com todos os horrores que acontecem com o povo palestino, em todas as épocas temos um indivíduo palestino ilustre que pode dar esperança e coragem a cada um de nós, que nos dá uma sensação de libertação, de liberdade, quando age em nome do grupo.
desorientalismos: Gostaríamos de saber mais sobre sua observação de que os torturadores israelenses não conseguem lidar com o olhar dos palestinos. Em outras palavras, por que o colonizador, o torturador, não suporta olhar para o colonizado, o torturado? Outra questão: existem trabalhos na América Latina sobre como, em nossas ditaduras, as repressões e torturas eram, às vezes, especificamente cruéis com mulheres ou pessoas queer, usando a violência relacionada a gênero de forma adicional. Como você vê isso acontecendo na Palestina?
Samah: Duas grandes questões. Vou começar com a primeira. Acho que, primeiro, antes de falar sobre sobre a incapacidade deles [torturadores isrelenses] de tolerar o olhar dos palestinos ― escrevi um artigo sobre isso, vocês provavelmente o leram ―, quero apenas dizer que a maneira como entendo essa intensificação da brutalidade nas experiências de tortura em interrogatórios de palestinos. Vejo isso como um sinal de perda de controle entre os israelenses. Eles estão perdendo o controle, estão perdendo a cabeça e estão mostrando o pior. E eles filmaram a si mesmos fazendo isso, exibiram e enviaram uns para os outros.
Eles evitam o olhar dos palestinos porque acho que têm medo. Talvez seja medo, talvez o olhar da vítima de tortura os lembre de sua própria humanidade, ou pode ser um olhar muito desafiador, o que pode ser provocativo e os quebrar psicologicamente. Estou ouvindo alguns relatos das pessoas que interrogaram [Yahya] Sinwar agora, que é o grande alvo dos israelenses, acusado de liderar toda essa situação em Gaza. Alguns de seus interrogadores relatam que tinham medo dele enquanto o interrogavam, enquanto ele era vítima de tortura em suas mãos. Por isso, acho que certos detentos palestinos podem ser tão desafiadores e, por meio de seu olhar, sacudir o chão sob o interrogador. E talvez outros que são instruídos a praticar a tortura tenham medo de encontrar a humanidade, de encontrar sua própria humanidade através dos reflexos dos olhos palestinos.
Sua outra pergunta foi sobre a tortura na América Latina e a especificidade de gênero. Israel treinou alguns torturadores na América Latina, você provavelmente sabe disso, e patrocinou pessoas que cometeram um genocídio na Guatemala, por exemplo.
De qualquer forma, em relação às especificidades de gênero, sim, de fato, eles têm uma certa contribuição que provocará e explorará a sensibilidade da sociedade palestina em relação às mulheres. As mulheres são mais ameaçadas de estupro, mas agora vemos o estupro ser cometido contra homens também. Mas eles entendem o quão conservadora a sociedade palestina será em relação à possibilidade de estuprar uma mulher, pois as histórias de estupro de mulheres são menos expostas, as mulheres falam cada vez menos sobre isso. E também questões relacionadas ao seu corpo, à sua fisiologia, à sua higiene, à sua maternidade. Algumas mulheres com quem trabalhei, ex-detentas, me disseram que eles continuam injetando nelas a culpa pelos filhos que ficaram para trás. Como se elas não fossem boas mães. Algumas são informadas que seu marido encontrou outra mulher, ou que se casaria com outra mulher. Assim, tentam explorar as sensibilidades sociais e de gênero em relação às mulheres.
E há outra observação sobre gênero, a comunidade queer. Essa é a pior situação, ser gay e estar preso por Israel. Isso se tornará mais um motivo para chantagem e exploração. Em um dos meus artigos, cito um jovem de Hebron que estava vindo do exterior, da Malásia. Os israelenses confiscaram seu celular e laptop e encontraram material que prova que ele é homossexual.
Durante todo o interrogatório, ele foi ameaçado de ser exposto à comunidade conservadora de Hebron. Ele foi ameaçado de ser estuprado e a viver com as consequências físicas disso. Mais tarde, me contou que esse foi o motivo de ter quebrado. Era como se a tortura física não o tivesse quebrado, mas essa ameaça sim. Portanto, essa também é uma intervenção específica de gênero, eu diria.
Zaynab e eu conversamos sobre um jovem em Nablus que era informante dos israelenses e contribuiu para o assassinato de seis ou sete homens da região. Quando foi pego pelos palestinos, gravou uma fita em que contava sua história e o que havia acontecido com ele, que foi chantageado e recrutado para se tornar um colaborador por ser gay. Então, primeiro, a questão era [ele ter uma orientação] sexual não aprovada socialmente, e depois foi recrutado para se tornar um colaborador. Ele delatou algumas pessoas e, por fim, foi morto por ativistas em Nablus.