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Oguatás míticos Guarani e Kaiowá; caminhar entre mulheres, artes cênicas e o fazer corpo

Carla Ávila e Jade Ribeiro

 

Muitos dos Kaiowa que conhec;o contam que, no principio de tudo, era a palavra, nao existia a terra. Então, um dos seres cheios de palavra e de luz criou varias camadas de argila que se conver­teram em terra; esticou-as como se esticam os cor­pos cansados ao se espreguic;arem, para que todos os seres humanos – indigenas e nao indigenas – te­nham um lugar para apoiar os pes e erguerem seus corpos, fisica e espiritualmente (CHAMORRO, p. 2012, p. 215).

No esticar do corpo, argila da grande mae primordial, agre­gam-se as camadas deste corpo/texto muitas outras vozes e saberes das mulheres que dividem conosco esse (re)existir, em um tempo-espaço-mitico estendido no passado, no pre­sente e no outrora, dispostas a estudar encontros e hibrida­ções de nossas interculturalidades nas Artes da Cena, em ter­ras fronteiriças no Mato Grosso do Sul.

Como no mito fundador da criação da terra dos Kaiowa e Guarani, as camadas de nossas corpovivencias nas Artes da Cena se convertem em corpo/terra, território, modos de exis­tir e por esses lugares corpografamos a jornada pelo que os Kaiowa e Guarani costumam chamar de oguata, nas palavras de Graciela Chamorro1, “o Oguata ea terra que se apresenta para os grupos indigenas chamados guarani como espaço que deve ser caminhado”. Oguata e caminho e caminhar.

Uma terra caminhada e um espaço cultivado, ocu­pado, humanizado. O pensamento mítico e reli­gioso desses povos integra na ideia criacional uma terra que deve ser caminhada, que comporte novos horizontes, que seja ocupada de modo humano e pleno (Melia, 1987, p. 6)2

Assim e para nós também o espaço do fazer teatral, espaço cultivado, relacional, humanizado, desse desejo pela cami­nhada como um espaço criacional de um corpo/terra, esco­lhemos “o Oguata” (o caminho) como estratégia de existência, narrativa de uma dimensão humana e plena, e e por esse caminhar cotidiano que apresentamos nossas falas e enfren­tamos os inúmeros contextos sombrios com os olhos no ho­rizonte dos caminhos que se anunciam, sem jamais perder a conexão que emerge do profundo útero da mãe terra dos

quais seguimos (re)nascendo em Arte.

Importante destacar que nesse desafio de caminhar neste breve relato texto, enfrentamos o período da pandemia; pa­rentes contaminados, muitos ceifados pela Covid, luto, cui­dados com os filhos, com a casa, com o trabalho, com o fazer criativo, uma gravidez de risco, mais trabalho, um parto e a chegada de uma hebe, pequena menina indígena, vida que chega coma anuncio de que as camadas de corpo/terra se­guem se expandindo e (re)existindo.

 

CAMADAS MULTIVERSAS; nos

Ola, meu name e Jade Regina Ribeiro, eu nasci na cidade de Dourados, na aldeia Jaguapiru, em 1998, hoje tenho 23 anos, sou graduanda em Artes Cenicas na UFGD, faço audiovisual, sou artista, universitária, esposa, mãe de três crianças ainda pequenas e fui criada na aldeia de Dourados, Jaguapiru.

Estudei sempre na escola da aldeia e mesmo assim nunca estudei em minha língua materna. Tinha 7 anos, eu estava na segunda ou primeira serie e coma aqui na aldeia tem mais professores karai, não indígena, eu senti o preconceito na minha pele e na pele dos meus colegas que falavam a língua materna. Este processo foi muito difícil, porque os professo­res não entendiam o que os meus colegas falavam. Teve uma vez que os meus colegas que nao falavam a lingua materna, fizeram uma piada com uma amiga, isso mexia muito comigo. Eu cheguei e comentei com minha vó sabre coma eles esta­vam rindo da menina, porque ela falava a língua materna e coma isto me abalou. Minha vó decidiu que não ia mais falar o guarani com a gente, minha colega sofreu preconceito por­que ela falava a lingua e eu deixei de falar. Por isso, hoje, eu não falo mais o guarani, mas entendo.

Assim, desde a palavra, as injustiças são parte de nossa realidade coma indígena no MS. Dentre essas inúmeras in­justiças, vou contar um relato que vivi numa área de conflito, numa área de retomada. A gente foi convidada para participar da tropa de apoio, ficamos um a semana ali com eles. Isso f oi em 2015 e uma coisa que me marcou muito foi a dona da fa­zenda ter mandado pistoleiros em uma Kombi, alem da forma coma falou, ela foi muito irônica.

Quando nos viu em reunião, ela perguntou o que estáva­mos fazendo e quando a gente ia acabar com a palha<;ada, que ali nao era o nosso lugar e que os pistoleiros que iam chegar, estavam descendo para atirar em todo mundo. Mas quando a gente esta numa area de conflito define qual e a função de cada um, o que tem que fazer e quais são os códigos [ … ].

Quando a Kombi chegou ja tínhamos recebido um código, assim a gente foi ver. A comunidade, que estava toda junta, fechou esta Kombi, muitos estavam armadas com flechas, pedaços de madeiras, facões. A gente estava ali sem nada, sem armas – ou brigava ou morria. Antes deles descerem, nos conseguimos fecha-los e nossa liderança pediu pra eles abri­rem o carro e quando abriram estavam com as pistolas todas apontadas pra nosso lado dizendo que iam atirar pra matar, mesmo todo mundo ali com medo. Nossa liderança maior en­trou no carro e todo mundo tentou invadir, só que ninguem atirava nem de um lado, nem do outro e a gente disse que ia ficar ali e que mandasse o recado. Naquele momenta, vimos o quanta a união faz a força.

Eu acho pesado como as pessoas lidam com a demarcaçao aqui. Por exemplo, eu ouvi na cidade: “Ah! Aquele índio in­vasor”. Passa em algum lugar: “Ah! Aquele índio sujo, vaga­bundo, invasor”. Eu lembro também uma vez em que a gente foi convidado para assistir ao filme “O martírio”3, na UFGD, tinha uma galera da aldeia e eu. As pessoas la, quando viram e terminaram de assistir, não sabiam o que falar pra gente, não sabiam se elogiavam, ou se davam um abraço. Achei es­tranho ! A gente vive isto, a gente vê isto direto! Essa e nossa vida aqui no MS.

Oi, sou Carla Avila, nasci e cresci em Campinas-SP, mas após os 21 anos, depois de muito dançar, sai pelos caminhos do mundo a conhecer culturas e ancestralidades. De la pra ca, são 25 anos. Hoje, moro em Dourados, MS, sou mae, ar­tista docente na UFGD4 e pesquisadora de Dança/Teatro/ Performance, prefiro dizer das Artes da Cena, porque cada dia mais desfazer fronteiras, quebrar cercas, faz mais sentido para mim do que delimitar territórios.

Lembro de meu primeiro “Oguata”. Doze horas me sepa­ravam de Campinas (SP) a Dourados (MS), eram horas ob­servando como a paisagem se transformava e ao atravessar a ponte que divide o estado de Sao Paulo do Mato Grosso do Sul, ao fitar o horizonte, parecia estar olhando aquela linha divisória infinita entre ceu e mar, só que agora com um infini­te de pastagens e bois, ou infinites de soja, milho, eucaliptos e um mar de monoculturas. Nenhum sinal de grandes cidades e grandes teatros.

As retas infinitas pareciam nunca ter fim e surpreendente­mente as fazendas e o desmatamento tambem nao, raramente se encontrava um corrector com uma “florestinha”. Curioso e observar uma unica arvore de madeira de lei poupada pela lógica do agronegócio, aqui e acola, essas centenarias se man­tern altivas, tristemente solitarias em meio aos pastos e plan­tações. Curioso ainda e, profundamente triste, ever a quanti­dade de animais atropelados nesses “retoes”, malhas mortais para a fauna do estado, e compreender o que esta devasta\’.ao de vida representa para o modo de existir dos povos indige­nas deste estado.

Desde que cheguei, ao caminhar na regiao de Dourados, reconhecia a presença forte da cultura indigena Kaiowa e Guarani e ao mesmo tempo que essa população me desper­tava profundo e genuino interesse. Longe de minhas utopias paulistanas, os Guarani e Kaiowa do MS encontram-se em uma grave crise humanitaria, em situaçao de risco e genocí­dio. Nas ruas, a população indigena esta presente circulando em suas motos, bicicletas, ha sempre carroças com maes e crianças indigenas ou vendendo mandioca ou pedindo ali­mentos e quase sempre essas mulheres e suas crianças pa­recem ser (in)visibilizadas por parte do poder publico e por grande parte da população da cidade.

Com seu andar peregrino Nandesy recria o mundo desbravando a mata. Desde en tao a palavra também e um ser peregrino, e caminha entre nós (CHAMORRO, 2012, p.217)5

 

CAMADAS MULTIVERSAS; Educação, Arte e (inter) culturalidade

A minha relação com arte na es cola sempre foi com professor karai e a única semana que a gente via algo assim da nossa cultura era na semana de 19 de abril, a semana de povos indígenas. A escola fazia muitos eventos como brincadeiras tradi­cionais, alimentos, feira, desenho, poesia com alunos da esco­la. Na escola onde estudei, a Escola Tengatui, a gente começaa a ter aula de Guarani e Terena no sexto ano. Do pre ao quinto ano, a gente não tem aula de língua materna e na maioria das vezes nao e professor indigena e um sempre um karai.

Uma questão que eu deixo: uma criança que falou ate os cinco anos a língua materna, quando entra num contexto desse dentro da sala, ela vai ter dificuldade de comunicar para pedir para ir ao banheiro, para lanchar. Como que a criança vai ficar neste contexto? Como um professor karai pode aju­dar nesse ponto?

O meu primeiro contato com as artes cenicas ea minha busca por este curso foi a apresentação que eu vi, em 2014, na Escola Estadual Guateka Marçãl de Souza, onde eu estu­dava. A apresentação de teatro era de uma turma da UFGD, do Coletivo Moenda. “Amizade e uma coisa, farinha e outra”6 e contava a história de um amigo que explorava o outro. Eu fiquei tão alegre, pois vi todo mundo da escola participando com os alunos, prof essores, diretor e faxineiros e todos par­ticiparam e isto foi encantador porque eu sempre gostei de

pessoas e falar com pessoas. Isto marcou muito em mim, o  Teatro, porque fizeram todo mundo do contexto participar.

Em uma das primeiras aulas de Artes/linguagens cor­porais que ministrei, no curso de licenciatura indígena TEKOARANDU7, com a disciplina “Arte na educação escolar indigena”, vivenciei muitas dificuldades, mesmo antes do en­contro com os estudantes.

Eu me questionava sobre minhas habilidades e competen­cias para ensinar, o que e arte para os povos indigenas, o que  era arte para aqueles estudantes e por que ensinar arte em es­colas indígenas? Essas eram algumas das muitas indagações que fazia a mim mesma enquanto estudava artigos e teses para preparar a disciplina. No primeiro dia de aula, ainda cercada das questões, iniciei a aula falando da importancia da Arte para nos tornar melhores seres no mundo, melhores cidadãos.

Foi quando lá do meio do círculo de cadeiras, um braço se le­vanta e com olhos atentos e brilhantes, um discente indígena pergunta-me com o portugues coma sua segunda língua;

– Professora, o que significa cidadão?

Aquela pergunta, muito mais do que as minhas, me acertou como um raio com uma trovoada grave sobre minha cabeça e coração. Olhei bem para ele, buscando a mesma sincerida­de no olhar e resgatei, em meus pensamentos, ideias. Fiquei migalhando palavras na tentativa de responder alga positivo a altura da importância daquela pergunta vinda de um uni­versitário Guarani e Kaiowa. Nao encontrei nada que pudesse explicar bem o que poderia ser um cidadão naquele contex­to e indiquei aos estudantes que fizéssemos uma pausa para uma agua. Na verdade, eu e que precisava desesperadamente de uma pausa. 8

Quando cheguei na faculdade, eu ja era mãe, tinha minha filha, que hoje tem nove anos. Na época, ela estava com seis anos e agora sou mãe de mais um menino de dais e uma hebe recém-nascida. Eu escolhi artes cênicas porque coma a aldeia tem muito opressor na cidade de Dourados, todos sofremos muito preconceito em olhares, falas. Eu mesma ja passei par um monte de piadinhas na cidade par ser índia, ou pela minha cor, ou pelo jeito que me vista.

A mídia de Dourados também e muito manipulada e mani­puladora. Eu resolvi fazer artes cenicas porque em um teatro voce pode entrar em altos espaços da comunidade para lidar com muitos temas de uma forma tao criativa, o teatro mostra muito a realidade da gente. Por isso, ser mãe, estudar artes ce­nicas, ser artista no contexto desta pandemia em Dourados, pra um indigena e resistencia. Par isso, para mim, o teatro e na minha vida uma inspiração e eu gosto muito do meu curso, eu queria fazer e faço artes cenicas para ser atriz e quero tra­balhar na area com a juventude e as mulheres indigenas.

 

CAMADAS MULTIVERSAS; “artivismo”, imaginário mítico ancestral e território

Depois de tantas imagens corpografadas na universidade, nas visitas as aldeias, no convívio com os estudantes indígenas  e não indígenas, nas festas e visitas a acampamentos e festi­vais de teatro não era possível seguir trabalhando com Artes Cenicas e não perceber que os ensinamentos no projeto po­litico/pedagógico do curso ou o que a grande maioria de nós artistas docentes criavamos, em quase nada dialogava com a cultura Guarani e Kaiowá ao nosso reator.

Nas disciplinas, comecei a perguntar aos estudantes se eles tinham familiares ou amigos indígenas ou se já tinham vi­sitado uma aldeia próxima. Assustadoramente durante anos seguidos a enorme maioria nunca desconhecia as populações indígenas da região ( ou preferia contar assim suas histórias). Para mim, diante da crise vivida pelos Kaiowa e Guarani no MS era urgente descolonizar o pensamento, o gesto, nossos corpos e as Artes da Cena no estado.

Quanto de nosso senso de belo esta pautado “fora” de nos­sas realidades do Sul? Quanta tempo mais sera necessario para que olhemos para dentro, para questões sociais, etno­-raciais e éticas e estéticas que estão ao nosso reator para mos­trarmos tais questões nas Artes da Cena? Ao valorizarmos não com olhar extrativista colonizador, mas como ponto de partida de uma potencia ética-estética e criativa (trans)for­madora9, artivista? Quando será que a arte produzida por nós será capaz de também descolonizar os fazeres/pensamentos nos contextos das artes da cena?

Por essas e por outras questões, criamos um coletivo de artistas/pesquisadores e universitários em 2010 – o Grupo Mandi’o e, em 2012, o projeto de extensão “Cantos e Dan\’.as Guarani e Kaiowa”, em parceria com as aldeias e grupos in­digenas Panambi, Panambizinho, Aldeia Bororó e Jaguapiru, grupos acampados; Ita’y e Guyracamby’i, na tentativa de iniciar nossas “Alianças Afetivas”. Ate o ano de 2016 nunca tivemos um(a) estudante indígena que tenha frequentado o curso com regularidade, e isso tambem era uma grande ques-~ tao … por que.”?

A faculdade e um mundo novo pra gente. Quando cheguei, em 2017, no curso de Artes Cênicas, era a única indígena da turma e fui bem recebida por todos, as pessoas me trataram e me tratam também. O que mais me chamou atenção foi a forma que me senti tão eu, encontrei pessoas iguais a mim, que pas­sam par coisas iguais a mim e estão lutando por algo. Isto que me chamou mais atençao em cênicas. Uma coisa que acontece na faculdade e essa dificuldade de entender e par isso sabra vaga de indigena, porque o indigena que mora na aldeia, que fala língua materna fluente, chega nesse contexto bem diferente da faculdade, nao conhece nada, sao palavras novas. Parece que a faculdade e um enigma na mao do acade­mico recem-chegado que mora na aldeia. Eu acho isso difi­cil demais, a faculdade e publica e par que nao tern professor qualificado pra falar a lingua indigena, par que não tern um tradutor que possa falar a nossa língua?

Existem também outros desafios. Uma vez um colega falou que tinha dó de mim porque eu era indigena e que nao sabia o que eu estava fazendo naquele contexto. Só que e dificil en­tender a dor do outro sem ser o outro. A gente pode se par no lugar dele, mas sentir a dor que ele esta sentindo e dificil. Eu tambem vi que e born adquirir mais conhecimento, a gente acessar as coisas para ajudar outras pessoas. Eu mesmo quando quero fazer, aprendo e ensino. Tudo eu passo para a comunidade. No curso de cenicas tambem me alimento de ensinamentos e aprendizados e depois divido esse aprender.

Em ocasião da escrita desse texto, fomos, Jade e eu, visi­tarmos o Sr. Jorge e a Dona Floriza e contar-lhes que agora o Grupo Mandi’o também tinha uma parceira artista indígena. O casal de lideranças nos lembraram de nossos feitos no tempo do espetáculo ‘’.A.ra Pyahu; descaminhos do contar-se” (2014-2016)10 e fizeram questão de contar a Jade a importância do projeto do Teatro em parceria com os grupos indígenas, reafir­mando o quanta os projetos do Mandi ‘o os alegravam, porque ajudavam as crianças que estão crescendo vendo essa arte va­lorizar a cultura, coma Jade. E de fala mansa e pausada me diz;

[ … ] Mandi’o Ha’e upeixa yma opyrun ko yvype jave Ha’e ou pentei kunha ipora Upe’a Ha’e nhandejara rajy te’e Ha’e ogueruma voi ojehe Pentei tembi’u tuixava ogueru oi ojehe ikamyre pentei kamby Upe’aHa’e omokambu hagua mem­bykuera ko yvypype ha Mandi ‘o Ha’e oin pe’en koaga ip­yahuva nderehechaveima ha ndereikua’aiveima mba’epa ojehu araka’e oime Ha’e heta Mandi’o, Mandi’o jeruti, mitii kunha Mandi’o, Mandi’o mirim [ … ] E continua reforçando suas afirmações  Carla quando a gente fala, eu escutei voce falando no Mandi ‘o, de Mandi ‘o vem dele muito, muito, muito alimento a nossa epoca, coma minha avó, meu avo, minha miie mostrava pra gente comae que o Mandi’ o tem uma proteina.[. .. ] agora nós niio estamos sabendo nem fazer um biju, entiio Mandi ‘o entra muito, niio e só farinha, niio e só mandioca cozida. Na epoca, nosso leite Joi feito com mandioca [ … ]. Tem várias coisas para falar sobre mandioca, existem a mandi ‘o mirin, mandió guassu e entre muitas tem a “Tapiti kue”. “Tapiti kue” e uma rai, Nandesy pegou e quebrou a raiz e plantou, quando nasceu, nasceu tres e ali nasceu a mulher, as miies, a mulher que da o leite.

Ao ouvir esse relato mitico da mulher raiz, refleti na di­mensão potente e simbólica da fala daquela sábia “Jari” que tanto nos ensina, e no poder de nós mulheres artistas, por meio de nosso caminhar, nos nossos fazeres sociais e artis­ticos. Movemos mundos, alimentamos o viver e transfor­mamos realidades por meio do “artivismo” teatral, do mo­vimento do canto/dança e o sonhar constante na dimensão das Artes da Cena.

Eu acho que as cênicas podem ajudar em muitos aspec­tos da minha vida, coma mãe, como indígena defendendo meu povo. Com a arte a gente articula. Vou Falar do “Kou Kuera”11, o que quer dizer, “aquele dali” criamos um canal no YouTube com o intuito de mostrar nossa aldeia Jaguapiru. Ano passado o canal foi contemplado com a lei Aldir Blanc e a gente conseguiu comprar algum equipamento e com o dinheiro a gente fez, no final do ano, em dezembro, uma ar­recadação para as crianças, tudo em prol da comunidade. As artes cênicas eu quero terminar e montar um espetáculo que fala realmente o que acontece com o indígena na cidade, na área de conflito. Abordar todos os temas com a arte, porque a arte cura.

 

CAMADAS MULTIVERSAS; Oguatas O caminho se faz ao caminhar juntas

Na universidade me vejo como uma resistente, como todos os meus colegas, porque todos lutam contra o preconceito. Isto faz de nós artistas resistentes, porque arte e resistir. Penso que as artes cênicas podem salvar muitas expressões mal contadas sobre nós, pelos karai. Por isso, eu escolhi fazer cê­nicas porque as cênicas podem falar sobre a verdade de meu povo de uma forma artística.

O que eu vejo muito e que os karai dão mais valor para um quadro pintado do que para o próprio indígena. Preferem o quadro do que tentar entender como ele vive, como o indíge­na vê o espaço, porque ele não tem a mesma visão das coisas que o karai. Eu acho que a arte vai mostrar a nossa realida­de de verdade, um indio mostrando a arte da realidade, isto choca as pessoas. A arte vai ajudar bastante, minha ideia de fazer arte cenicas e mostrar histórias reais, nosso conheci­mento, aprofundar na minha ancestralidade, por isso tenho pesquisado bastante, buscando minha vó, ouvindo minha vó. As poesias que eu escrevo, me inspiro nas coisas aqui da al­deia, nas mulheres, quando eu entrei na faculdade, eu apren­di uma palavra nova que se diz FEMINISMO. Esta palavra despertou em mim, quero falar mais das mulheres indigenas.

Na relação entre o teatro e os povos indigenas nós mulheres indigenas e nao indigenas nesses anos de partilhas seguimos atravessadas pelas cosmovisões Guarani e Kaiowa dos gran­des arquetipos femininos, assim entendemos parte desse mesmo corpo/cosmos criador. Na cultura Kaiowa e Guarani a terra se estica, murmura, e viva, se expande. Assim neste fazer corpo o corpo também e terra, território, e caminhar e caminho, o teatro e os povos indígenas devem estar sencien­tes de nossas (co)relações, (co)existências expandidas como a terra que se espreguiça e sussurra; “Somos terra, filhos de Nhandesy mãe corpo/terra, alimentados por Mani corpo/ali­mento; renascimento e cura”.

Minha vó sempre falava desde que eu era pequeninha: es­tuda menina, estuda menina! A unica coisa que nao vai te dei­xar. E bem verdade mesmo o que ela falava com a gente. Hoje tambem diz, minha neta e artista, ela nao fala fotógrafa, ela fala: e dona da Camera. Hoje ela e meu avó, que mora no Mato Grosso, fala pra todo mundo: minha neta e atriz, artista!

Seguimos (re)existindo, acreditando que as Artes da Cena sejam também um corpo/mulher/terra que se expande, onde seres plenos de palavra e luz criem espaços para que todos os seres humanos – indígenas e não indígenas – tenham um lugar para apoiar os pés e erguerem seus corpos, fisica e espiritualmente. Aguygevete!

 

1 Graciela Chamorro artista do canto, Doutora em História indigena e an­tropologia na FCH/UFGD, falante de guarani. Desde 1983, tern incursoes no mundo indigena sua extensa prodm;ao bibliográfica convergem os resultados de suas pesquisas no ambito da religiao, da lingua e da história dos povos “guarani” chamados históricos e dos contemporaneos. Atualmente trabalha na edição do segundo volume de um Dicionario Etnografico Histórico dos povos indios reduzidos pelos jesuitas, em contraponto com a atual etnogra­fia guarani (nhandeva), kaiowa e mbya. Desde 2010 e colaboradora do grupo Mandi’ o que trabalha com artes da cena e povos amerindios. CHAMORRO, Graciela. Narrar com os pes: uma aproximapio da história oral des­de a perspectiva kaiowa. In: História Kaiowa. Sao Bernardo do Campo: Nhanduti Editora. 2015.

2 MELIA. B. La tierra sin mal de los Guaranies, economia y profecia. Suplemento Antropológico, Asuncion, CEADUC, 22 (2):81-98, 1987.

3 Filme Martirio (2016), 160 min, dir. Vincent Carelli. Fala sob re a realidade das populações Guarani Kaiowa e o genocidio em que esta população se encontra.

4 Curso de Bacharelado e Licenciatura em Artes Cenicas foi criado em 2009 e es ta sediado na Faculdade de Comunicação Artes e Letras da UFGD, Dourados no Mato Grosso do Sul.

5 CHAMORRO, Graciela. ; LANGER, Protasio Paulo; COMBES, I. Povos Indi­genas no MS: História, Cultura e Transformac;oes Sociais. 2012.

6 “Amizade e Uma Coisa, Farinha e Outra!” e baseado no conto “O Ami­go Dedicado”, do escritor ingles Oscar Wilde (1854-1900). A história e um relato da amizade entre Florinda, um homem simples, do campo, que se orgulha de ter como melhor amigo o falador Osvaldo, rico proprietario de terras da regiao. A dramaturgia propoe uma reflexao sobre questoes hu­manas universais, como o sentido da verdadeira amizade e do desprendi­mento, a etica nas rela<roes entre as pessoas, o egoismo, a luta pelo territó-rio, as diferen<ras sociais e suas consequencias. A pe’ra e parte do projeto de pesquisa “Laboratório de Pesquisa em Atua’rao”, coordenado pelo pro­fessor e Diretor Teatral desta e de outras obras, Jose Parente.

7 Curso de Licenciatura Intercultural Indigena Tekoarandu, Faculdade ln­tercultural Indigena- FAIND da Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD, MS. Este Curso tern como objetivo habilitar os professores Guarani e Kaiowa, em nivel superior de licenciatura, para o atendimento a Educa’rao Escolar Indigena, conforme preconiza a Lei, nos niveis do Ensino Fundamen­tal (anos finais) e medio, nas modalidades da Educação Básica, especialmente nas escolas de suas comunidades, tan to na docencia como na gestao escolar. (Projeto Politico Pedagógico TEKOARANDU, FAIND, 2012).

8 Fragmento das Teses “Corpografias originarias: processo de imersao poeti­ca intercultural.” Avila. C. – Campinas, SP: [s.n.], 2020. Doutorado em Edu­cação, desenvolvido jun to a um grupo de professores indigenas guarani e Ka­iowa do curso de Licenciatura indigena TEKOARANDU, FAIND-UFGD, no grupo de pesquisa LABORARTE, Faculdade de educação UNICAMP, sob a orientação de Marcia Strazzacappa.

Disponivel em; http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/347718 acesso em 04/07/2021

9 Tais reflexões sao problematizadas na Tese de AVILA, C. Corpografias Afro­-orientadas e Amerindias: cartografias de processos de criação em Dança Teatro Brasileira. 2018. Tese (Doutorado em Teoria e Pratica do Teatro) – Escola de Comunicações e Artes ECA, Universidade de Sao Paulo, USP Sao Paulo, 2018. doi:10.11606/T.27.2018.tde-05122018-102708. Acesso em: 2021-07-18. Tese orien­tada por Sayonara Pereira. Disponivel em; https://www.teses.usp.br/teses/ disponiveis/27 /27156/tde-05122018-102708/pt-br.php. Aces so em: 04/07/2021

10 MARSCHNER, A Trajetória do Processo Criativo em AraPyahu, des/caminhos do contar-se, Trabalho de Conclusão do Curso de Bacharelado em Artes Cênicas, UFGD, 2014

______ -Saberes do corpo kaiowa – lugar de mumzurio e resistencia. Dissertação de Mestrado, Instituto de Artes IA/UNICAMP, Campinas, SP: [s.n.], 2019.

11 “Kou Kuera” e uma palavra em guarani que significa “<lesses dali”. Pensando na importancia de mostrar um pouco da nossa realidade enquanto indigenas da etnia Guarani e Kaiowa. da reserva indigena Jaguapiru e Bororó – Dourados/MS, buscamos utilizar as redes sociais para falarmos sabre o cotidiano da aldeia, das condições dos meios de transporte, dos remedios caseiros, da nossa luta pela sobrevivencia dentro e fora da nossa comunidade! Daremos tambem voz as lu­tas das mulheres indigenas e as nossas expressoes de resistencia em frente a todos os preconceitos que sofremos por sermos indigenas. A nossa cultura tera um espaço de destaque, mostrando nossos cantos, rezas, artesanato e os nos­sos talentos. Link; https://www.youtube.com/channel/UCJE4waBgy _xEhV­lyn _ zmKaw /featured https://m.facebook.com/profile. php ?id=-1000154977Z3116

 

AUTORAS

Carla Avila e coreógrafa, diretora, performer, pesquisadora, artista-docente. Atualmente esta como diretora da Faculdade de Comunicai;ao Artes e Letras (UFGD) e artista-docente no Curso de Artes Cênicas. Desenvolve pesquisas no campo do Corpo e Ancestralidade. E tambem diretora do Grupo de Pesquisa, Extensao e Arte sobre Culturas Afro-Ameríndias e Artes Cenicas MANDI’O.

Jade Reginaldo Ribeiro, artista indígena da etnia Guarani­-Kaiowa, graduanda do curso de Artes Cênicas, na Universi­dade Federal da Grande Dourados (UFGD). Atua com diver­sos segmentos da atividade artistica de forma autonoma na Aldeia Jaguapiru em Dourados (MS) e e interprete-criadora no Grupo de Pesquisa, Extensão e Arte sobre Culturas Afro­-Amerindias e Artes Cenicas MANDI’O.