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O trapaceiro na antropologia política

Agnes Horvath e Arpad Szakolczai

Na linguagem da sociologia política de Max Weber, os momentos liminares são situações fora do comum. Essas instâncias de desordem e ansiedade, como guerras, revoluções, desastres naturais ou crises econômicas, podem ser resolvidas com o surgimento de líderes carismáticos. No entanto, como Weber bem sabia, não é de modo algum garantido que, no caso de um colapso da ordem, essas figuras apareçam de maneira automática. Mas a eventualidade de um fracasso nunca foi devidamente discutida por Weber, levando à evocação já rotineira, pela maioria dos sociólogos e cientistas políticos, das figuras genuinamente monstruosas da política do século xx, tais como Hitler, Stalin, Lenin ou Mussolini, enquanto “líderes carismáticos”, sem perceber quão pouco correspondiam ao carisma weberiano como dom da graça.

O trapaceiro como uma figura na antropologia foi cunhado por Paul Radin (1972). Por uma série de razões, demorou muito para que o termo obtivesse aceitação mesmo na antropologia (ver Szakolczai e Thomassen, 2019), e ainda hoje há uma relutância em aceitar a legitimidade de sua aplicação na política contemporânea. A questão principal não é tanto rotular os políticos concretos como “trapaceiros”, mas sim reconhecer um modo particular de comportamento, mesmo lógico, que pode se tornar infeccioso na vida política.

A característica mais importante dessa figura é que ela é externa a qualquer laço social ou humano. Um trapaceiro não pertence a lugar algum, não participa de nada, não se importa, não sente. Ele ou ela – o trapaceiro é com frequência do sexo masculino, quase nunca feminino, mas mais caracteristicamente ambissexual ou assexuado – tem uma posição exterior a qualquer comunidade humana, sendo, portanto, o eterno outsider. É por isso que o trapaceiro tem de inventar alguma artimanha para entrar, ganhar atenção e até confiança, apesar de seu caráter duvidoso, e mesmo ameaçador e desconhecido.

De forma paradoxal, é aqui que ele é ajudado por seu grande defeito. Sendo um outsider, sem quaisquer apegos e sentimentos, nele as emoções e o raciocínio, conectados entre si em qualquer ser humano até o âmago da personalidade, como “coração” ou “alma”, se separam, levando a um excesso patológico de poder de raciocínio, derivado da posição de exterioridade. Desta posição, o trapaceiro assume qualquer emoção humana como um “objeto” a ser “estudado”, o que o capacita a guiar os seres humanos exatamente quando estão sobrecarregados pelas emoções, e dessa forma, até mesmo obtendo controle sobre eles. E mais, ele pode estimular emoções nos outros, brincando com sentimentos humanos como se o fizesse com um instrumento musical.

A dinâmica do trapaceiro

A importância de usar o termo “trapaceiro”, antropologicamente desenvolvido, para a política (moderna) consiste em especificar uma lógica, ou dinâmica, particular. Isso foi especificado por Radin e, desde então, mais explorado numa série de estudos (ver, por exemplo, Hyde, 1999). O trapaceiro, não pertencendo a lugar algum, vivendo num vazio, um “não lugar”, decide se aproximar de uma comunidade. Sendo desconhecido, ele é tratado com apreensão, por isso deve encontrar uma maneira de se “conectar” ao povo, para despertar seu interesse. Ele começa contando histórias e piadas, atento às crianças em particular, tentando se tornar amigo de todos. Assim, lenta, mas de maneira contínua, obtém reconhecimento e acaba sendo admitido na comunidade. No entanto, quanto mais o trapaceiro se instala em seu interior, mais a própria comunidade começa a se desintegrar. Isso ocorre porque as piadas e histórias contadas por ele se tornam cada vez mais ambivalentes, sombrias, até violentas, dirigindo-se a grupos vulneráveis, usando a súbita popularidade do trapaceiro, que – como “amigo de todos”, portanto de ninguém em particular, usando o jogo do zero e o infinito – consegue obter informações sobre todos, identificando com facilidade os conflitos e os pontos fracos entre membros da comunidade. Conflitos emergem e proliferam, com o trapaceiro brincando de forma impiedosa com as emoções humanas, até que a situação se degenera em um pandemônio generalizado, ameaçando a própria sobrevivência da comunidade. A menos que, de algum modo, as pessoas retomem os sentidos, o trapaceiro desapareça e a situação volte ao normal, as pessoas têm dificuldade até mesmo de recordar o que aconteceu e por que, como se tudo tivesse sido apenas um pesadelo.

Essa trama é apenas a essência condensada de vários relatos antropológicos, coletados dos mais diversos lugares do planeta; no entanto, sua relevância direta e vital para a política contemporânea é evidente. Adolf Hitler foi uma nulidade e um fracasso em todos os níveis da vida, até mesmo como austríaco. Por muitos anos, ninguém o levou a sério – até a polícia relutava em prendê-lo, temendo que isso lhe desse notoriedade. No entanto, com o aprofundamento da crise econômica, cada vez mais pessoas prestaram atenção às suas excentricidades, seus votos aumentaram; em uma situação confusa, ele conseguiu obter um grande avanço e, em poucos anos, praticamente levou o mundo inteiro à beira do colapso. (…)

(…) Variedades de trapaceiros

Além da antropologia, trapaceiros estão presentes nas mais variadas mitologias, incluindo o pensamento religioso. O mais intrigante é que os trapaceiros desempenham um papel fundamental na mitologia grega (embora muito menos na romana), com vários dos mais importantes heróis mitológicos enquadrando-se na categoria, incluindo Prometeu, Dionísio e em especial Hermes.

O mitólogo Károly Kerényi, que esteve em contato próximo com Paul Radin, escreveu importantes estudos sobre três dessas figuras. Embora Prometeu e Dionísio tenham evidente relevância para a modernidade, para a antropologia política Hermes é a figura mais pertinente, também discutida com destaque por Michel Serres. Hermes é, antes de tudo, um mensageiro dos deuses e guia das almas. Seus interesses se estendem a todas as esferas da “comunicação”: economia e comércio, transporte e tráfego, linguagem (ver hermenêutica) e eloquência. Suas atividades são totalmente ambivalentes. Hermes é o deus do comércio, mas também um ladrão mestre; o deus do discurso, mas também um mentiroso. Ele não apenas guia as almas, mas também as rouba, levando-as para o submundo, que é o lugar onde a ambivalência brincalhona da figura termina. Hermes é uma divindade letal, sendo rápido e impiedoso, até mesmo rindo de suas infelizes vítimas.

A ambivalência pertence ao coração de Hermes, inclusive a da idade: Hermes é retratado como um jovem, mas também como um homem barbudo; e de gênero: Hermes sintetiza a virilidade, com representações fálicas, mas também é hermafrodita. Essa ambivalência é mais visível em sua ligação íntima com a noite. Por meio de Hermes, Kerényi adverte sobre os perigos envolvidos na abertura de forças inconscientes. Hermes, o deus dos limiares “abandonados”, é a divindade da liminaridade por excelência; mas também, como uma deidade de comunicação, comércio, linguagem, velocidade e sexualidade, personificando a ambivalência, é um paradoxal “deus da modernidade” – ajudando a entender a permanente liminaridade da modernidade.

O trapaceiro, como a análise anterior indicou, prospera em particular sob as situações liminares caóticas e incertas. Uma importante característica dessas condições é que os processos imitativos proliferam. (…)

 

AGNES HORVATH é doutora em Ciência Política pelo Instituto Universitário Europeu de Florença, na Itália, tendo lecionado no próprio Instituto, nas universidades de Cambridge (Reino Unido), Milão (Itália) e Cork (Irlanda). Sua pesquisa tem por foco a natureza transformadora da tecnologia, seus efeitos sobre a identidade e a fragmentação da vida social. Outros assuntos de seu interesse são: mimesis, momentos cismogênicos, formação de tricksters, peregrinação e longas caminhadas como mudança de identidade.

ARPAD SZAKOLCZAI é professor de Sociologia na University College Cork, na Irlanda. Nasceu na Hungria, no “lado de lá” da cortina de ferro, o que foi uma fonte de “experiências inesquecíveis a respeito dos efeitos sociais de ideias bem-intencionadas e malconduzidas”, em suas palavras. Tendo estudado nos Estados Unidos e lecionado no Instituto Universitário Europeu de Florença, na Itália, seu trabalho trata principalmente das ligações entre a Europa, a modernidade e os processos de globalização. Ao analisar conceitos desenvolvidos por antropólogos, se concentra nas condições históricas de longo prazo e nos efeitos sociais da religião.

O último livro dos dois, The Political Sociology and Anthropology of Evil: Tricksterology (Routledge, 2020), poderia ter seu título traduzido como: A Sociologia Polí- tica e a Antropologia do Mal: Trapaçologia.