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O teatro é um direito emblemático para a inclusão de nacionalidades originárias e os povos do mundo

Juan Francisco Moreno Montenegro

 

A relação entre o teatro e os povos indígenas, camponeses e colonos corresponde ao exercício de direito para o desenvolvimento integral (Convenção de Diversidade Cultural da UNESCO 2005).

Acredito que muito da teatralidade originária de nosso continente americano se dá com a interpretação das personagens dançantes das festas religiosas tradicionais (por exemplo, de Miguel Rubio, diretor do Grupo Cultural Yuyachkani, no Peru); ou seja, ocorre, mas não no cânone ocidental.

Nos dias anteriores ao festival Inti Raymi (a Festa do Sol é a época da colheita e agradecimento ao sol pelos alimentos, corresponde ao solstício de verão e acontece em  21 de junho), na comunidade Mojandita do cantão Otavalo, da província de Imbabura (Equador), os dançarinos se vestem de mulheres e vão até a casa de seus vizinhos, batem na porta, imitam vozes das esposas, mães ou filhas, se fazem passar por algumas delas, e se alguém da casa abre a porta, o dono da casa é obrigado a dar comida a toda comitiva dos disfarçados. Este jogo é planejado, sabe-se que acontecerá, os vizinhos se cuidam, vigiam, não os deixam entrar, às vezes, os disfarçados tentam entrar à força, é um jogo para rir e se divertir em comunidade. No transcorrer da festa, os personagens têm diversas funções, desde divertir, irritar, até brindar “a limpeza de energias ruins”.

Os desfiles das festas tradicionais são compostos por bailarinos festivos, que dançam e imitam animais de seu ambiente, quando é possível observar elementos carnavalescos, combinados com nossas raízes ancestrais. As pessoas da comunidade ou visitantes da festa já sabem o que eles farão, mas querem ver como será feito. Alguns artistas que têm trabalhos corporais e antropólogos têm estudado a função simbólica e festiva dos celebrantes, o que tem mostrado variações em cada localidade. O bailarino Wilson Pico e sua filha Amaranta estudaram 12 personagens de festas tradicionais do Equador.

Saindo do âmbito patrimonial, e tendo o conhecimento que as culturas são dinâmicas, em minha busca de grupos de teatro de povos originários do Equador, descobri que existem esforços endógenos e exógenos de reafirmação cultural que terminam sendo teatrais devido a necessidades diversas, desde a retomada do exercício de uma prática ancestral, passando pela denúncia socioambiental até o desvendamento de determinantes socioculturais comunitários.

Sou abençoado por conhecer, até o momento, dois grupos teatrais mantidos ao longo do tempo, criados por pessoas de povos originários que têm conduzido espetáculos de dramaturgia própria ou, em outros momentos, teatralizado sua tradição oral. O que posso dizer é que tais espetáculos se encaixam na estrutura dramática aristotélica, mas manifestam um pensamento paradoxal próprio destas terras americanas.

Esse pensamento está presente em nossa cultura castelhana andina, por exemplo: se amanhã fosse segunda-feira, nós poderíamos dizer “mañana ha sido lunes”, significa que foi feito um cálculo mental dos dias em relação à semana passada, pois o termo “ha sido” não é presente, é particípio do passado e isso quer dizer que para falar do futuro nos referimos ao passado. O conceito andino “Ñawpa Washa” tem o sentido: seu passado está à frente, talvez indique que, enquanto não resolver seu passado, repetirá suas ações ainda que com diferentes pessoas e circunstâncias.

Agora, começo a expor mais detalhadamente os dois grupos:

Na Universidade Andina Simón Bolívar me informaram que em Cotacachi, província de Imbabura, havia o grupo teatral Ñapash Purina, criado com apoio da UNORCAC (União de Organizações Camponesas Indígenas de Cotacachi). O grupo começou suas ações com a realização de uma obra de teatro sobre parteiras, para tornar a divulgação e o ensino da obstetrícia ancestral para meninas, adolescentes e jovens. Em um marco de emancipação e feminismo comunitário, o gesto de recuperar a obstetrícia tradicional contra a prática hegemônica levou às parteiras de UNORCAC celebrarem seus corpos, às suas maneiras e com esforços próprios. É claro que não foram utilizadas algumas convenções teatrais para um público que vai a um teatro, mas isso não significa que ele deixe de ser teatral.

Posteriormente, com apoio da Organização Não Governamental (ONG) Terre de Hommes, crianças e jovens da UNORCAC receberam capacitação em teatro gestual com o propósito de confrontar, por meio de um trabalho reflexivo, o fenômeno do tráfico de pessoas. A ONG descobriu que o trabalho infantil nas oficinas artesanais de confecção em lã no cantão de Cotacachi, na província de Imbabura, chega a se constituir em escravidão de crianças e adolescentes. “A Fábula Dos Três Irmãos”, dirigida por Giovanny Revelo, fala sobre espíritos protetores que finalmente salvam as crianças e castigam os sequestradores. Com máscaras larvarias e ancestrais, estruturas portáteis e música andina, o aquecimento corporal para um ensaio ou apresentação teatral do Ñapash Purina consiste em dançar por meia hora, em roda, a dança ritual nativa “Sanjuanito” com o qual se conectam com a divindade, o corpo e a coesão do grupo para o espetáculo.

A UNORCAC é uma associação com 40 anos, formada por mulheres indígenas de Cotacachi, onde suas fundadoras decidiram reunir-se para melhorar sua situação econômica e falar sobre o machismo. Ser capaz de se articular e se sustentar ao longo do tempo às vezes deu certo, porém, às vezes, nem tanto. As mulheres se reuniam com o intuito de falar sobre saúde, para que métodos contraceptivos fossem aceitos por seus maridos. Elas quebraram tabus culturais, se organizaram e conseguiram vender os produtos agrícolas de suas fazendas para a área urbana de Cotacachi. Assim, pouco a pouco melhoraram sua economia e adquiriram certa autonomia.

Com o passar dos anos e, com muito apoio da cooperação internacional, conseguiram ter uma grande sede própria de coleta de grãos, um restaurante e um espaço de reuniões de três andares onde se reúnem e acontecem oficinas. Além disso, atualmente suas integrantes são proprietárias de empreendimentos de turismo comunitário com infraestrutura no segundo andar de cada imóvel, onde turistas aprendem sobre o atendimento ao cliente e preparação de alimentos.

Em maio de 2019, assisti a uma apresentação teatral do Grupo Cultural Shuar Yapankam, de indígenas Shuar. Presenciei duas obras, “Yapankam” e “Li Chichame”, em que tudo usado no palco me impressionou: a encenação, os adereços e as fantasias de Yapankam, o corpo das lanças tinha 10 cm de espessura e a ponta era do tamanho de uma folha de papel A4, um machado de 15 cm de espessura com uma lâmina do tamanho de uma folha A3 deitada. Fiz contato com a atriz e coordenadora Suanua Maiche e até agora estou encantado com os Shuar que fazem teatro.

Minha primeira convivência com Yapankam teve a duração de quase uma semana. Os convidei para meu festival de teatro intercultural Aranwa Raymi. Eles se apresentaram em Quito, capital do Equador, e nas cidades amazônicas de Lago Agrio e Cascales e assistiram a cerca de seis espetáculos de teatro interculturais.

Em meu país existem cerca de 15 espetáculos de povos que no palco honram algum elemento de uma cultura ancestral do Equador, dramatizam uma narrativa antiga ou homenageiam um herói ou heroína antigo ou contemporâneo.

 

Meses depois, Suanua viveu e estudou um tempo em Quito e comentou comigo que o grupo Yapankam desejava capacitar-se. Assim, com o propósito de apoiar suas necessidades teatrais, mantive uma relação próxima com eles. Então, após um árduo progresso no enfrentamento da pandemia e da inércia das instituições culturais do Equador, concretizamos uma troca de conhecimentos realizada nos últimos dois meses de 2020:

Em novembro e dezembro de 2020 junto com Guido Gómez (ator de teatro, diretor, pedagogo e comunicador) nos mudamos para a comunidade Kuamar, localizada na paróquia Macuma (Cantão Taisha, província de Morona Santiago), com o propósito de cultivar um intercâmbio de saberes e fortalecer – sem nenhuma pretensão – o processo teatral do Grupo Cultural Yapankam. Foi uma maravilhosa experiência recíproca, tanto para os Shuar quanto para nós.

Depois de muitas sessões de trabalhos prévios de acordos e detalhes, o formato combinado foi o de facilitar encontros de três horas por dia, seis dias por semana (de segunda a sábado), abertos às crianças, adolescentes, jovens e adultos interessados ​​de Kuamar. O grupo teve cerca de 40 participantes e, ao final do processo, fizemos três mostras de conhecimento em três povoados, apresentando as velhas histórias: “O Coelho e o Amendoim”, “O Cachorro Sarnoso” e “A Mulher e o Rato”, além de um show de palafitas com fantasias de fibra vegetal.

Uma conquista significativa em tão pouco tempo deu-se pelo fato dos seis integrantes do grupo estimularem os novos participantes a fazerem teatro e, também, pela sinergia de dois professores, pois nesta ocasião assumi as tarefas de coordenação, produção e gravação audiovisual. Embora, na verdade, eu tenha me envolvido diretamente atuando em algumas improvisações e dirigindo o show “A Mulher e o Rato”. Minha experiência anterior como professor de teatro na Silva Yacu, há 10 anos, e a tenacidade de Guido e eu em resolvermos dificuldades logísticas também teve a ver com isso. Falarei sobre Silva Yacu abaixo.

Inicialmente, meu planejamento partiu do pressuposto de fazer com que os membros do Yapankam se fortalecessem e se tornassem formadores teatrais, contagiando com o teatro Shuar no mundo Shuar. Rapidamente percebemos que em apenas dois meses não seria possível preparar formadores, pois, apesar da intensa carga horária, conhecimentos de técnica, pedagogia e gestão precisam de tempo para serem digeridos. Refletimos com Juan Manuel Maiche, o líder e gestor cultural comunitário da comunidade Kuamar, e percebemos que a formação que realizamos foi o início da Primeira Escola de Teatro Comunitário Shuar na Amazônia equatoriana.

Durante a troca de conhecimentos, foram compartilhadas algumas convenções de teatro (como dirigir três quartos, falar alto, direção cênica para o público na frente ou na praça, ocupação do palco, não dançar no palco etc.), também três danças andinas. Em troca recebemos: a saudação do guerreiro, as canções ancestrais Annet e Ampet, as coreografias de danças, a elaboração de roupas tradicionais, os modos de falar, os comportamentos, a gastronomia, a visão de mundo, o arquétipo do guerreiro, a abordagem com plantas tutelares etc. No momento, estamos em processo de apoiar o Grupo Cultural Yapankam na sistematização de um aquecimento teatral Shuar, na possibilidade de promover peças e oficinas em situação de pós-pandemia.

Diante do resultado favorável obtido, o próximo passo será dar continuidade à Escola através de processos de capacitação não-formais com duração de seis a nove meses, divididos em módulos, por cerca de três anos, garantindo que os integrantes do Grupo de Cultura Yapankam tenham mais técnicas teatrais e pedagógicas, para que suas obras sejam mais potentes e, com o tempo, possam compartilhar seus conhecimentos com outros Shuar. Tenho certeza de que alcançaremos cenários maravilhosos, gerando sensibilidade por meio de identificação fenotípica, depois compartilharemos com o povo Kichua Amazônico, da comunidade de Silva Yaku (paróquia Palma Roja, cantão Putumayo, província de Sucumbíose) e, finalmente, com o resto das nacionalidades e povos do meu país. Produzindo assim um encontro adequado e decolonial por meio do teatro intercultural comunitário, valendo-se dos direitos culturais adquiridos na Lei Orgânica da Cultura do Equador – cujos instrumentos jurídicos têm por objetivo definir as competências, as atribuições e as obrigações do Estado e a formulação de políticas públicas destinadas a garantir o exercício dos direitos culturais e a interculturalidade.

O processo de teatro comunitário do Grupo Cultural Yapankam, dos indígenas Shuar da comunidade Kuamar, teve início em 2012, quando Juan Manuel Maiche foi presidente do Nashe (Nação Shuar do Equador), organização evangélica comunitária Shuar na região Macuma. Juan Manuel buscava novas formas de defender sua cultura de forma não-violenta e nessa época se deu uma visita de um grupo de antropólogos franceses junto ao ator estadunidense Bryan Sonia Wallace. Bryan assistiu a uma dança tradicional Shuar que continha uma apresentação teatral e se ofereceu para compartilhar uma oficina de Teatro do Oprimido por cinco semanas, trazendo sua experiência com imigrantes ilegais em Los Angeles, Califórnia.

Essa formação foi realizada na paróquia de Macuma, teve cerca de 40 participantes de várias associações comunitárias, incluindo três filhas de Juan Manuel com idades entre 14 e 16 anos (Suanua, Yaunt e Yahaira). Segundo Juan Manuel, Bryan dava as instruções em espanhol e Juan Manuel traduzia para o Shuar, assim, ele também foi incluído na capacitação, que durou 140 horas e terminou com uma apresentação pública, quando foram entregues certificados. Desde então, Yapankam tem recebido apoio de vários aliados, geralmente antropólogos.

Dois pontos merecem destaque: por um lado, é triste que nenhum participante de Macuma ou do seu entorno tenha conseguido dar continuidade à prática teatral, uma vez que não existia uma rede institucional, familiar, educacional ou de apoio juvenil. Por outro lado, as três filhas de Juan Manuel todos os dias, em casa e depois da oficina, repetiam os exercícios aprendidos e os compartilhavam com seus irmãos menores e outras crianças de Kuamar, brincando assim como crianças aprendendo a fazer teatro. O consentimento de Juan Manuel para a prática teatral de seus filhos, sua capacidade de ser um líder comunitário e a necessidade de falar sobre seus problemas atuais fizeram florescer oito espetáculos teatrais. Juan Manuel definiu o tema de todas as obras, exceto “Yapankam” que é ideia de Suanua. Apresentaram trabalhos sobre os seus problemas em vários festivais comunitários, acadêmicos e artísticos. Os seguintes textos das obras, nomes e anos foram sistematizados pela comunicadora e amiga de Yapankam, Tania Laurini. Assim, temos as seguintes obras:

  1. Li Chichame – abril de 2019 até a atualidade.
  2. Video Niños De Kuamar – 2018.
  3. Yápankam (representação de história originária Shuar a partir do ressurgimento da vida, a última ave guarda um segredo revelador) – 2018.
  4. Justicia Indígena (uma história atual de comunidade e seus conflitos internos que são resolvidos comunitariamente em uma cena final que envolve o público presente) – 2017.
  5. Autoridades Corruptas (esquete cômica, oportuna em tempos de eleições) – 2017.
  6. La Venganza De La Lagartija (representação de uma história originária Shuar) – 2016.
  7. Violência Intrafamiliar (uma história atual de comunidade trabalhada socialmente pelo grupo de teatro de Kuamar) – 2016.
  8. Consulta Previa (sobre a consulta prévia de hidrocarbonetos de 2012).

O espetáculo “Yapankam” é a representação de uma narrativa antiga da tradição oral Shuar sobre o ressurgimento da vida. A história é protagonizada por Etsa, um jovem Shuar separado de sua família quando criança e criado como escravo por Iwia, uma gigante canibal com quem ele aprende a arte da caça. Ao crescer, Etsa matou quase todos os animais da selva, até o surgimento do Yapankam, ave exótica e mística que revela sua verdadeira origem. Para corrigir suas ações, Etsa concorda em realizar uma ação ritual com a qual consegue repovoar a floresta e restaurar sua vitalidade. Para interpretar os personagens, os atores utilizam objetos e elementos de sua paisagem cultural, utensílios e roupas tradicionais. A natureza destrutiva do personagem Iwia assume um significado mais amplo na peça, representando os atuais poderes políticos e econômicos.

“Il chichame” expõe os processos de colonização e evangelização que passaram a vetar o uso das línguas tradicionais e a impor o espanhol como código obrigatório de comunicação. Como resultado, as novas gerações deixaram de se comunicar em sua língua nativa, até que um líder comunitário convenceu os jovens sobre a importância de resgatar a língua como forma de defender sua identidade.

Os jovens membros do Grupo Cultural Yapankam são parceiros da comunidade Kuamar, conhecem os benefícios da prática do teatro e querem continuar aprendendo mais teatro e tornarem-se formadores e replicadores para o benefício da comunidade Kuamar e das Associações Comunitárias Shuar nas proximidades.

Voltando à minha reflexão, é importante destacar que este grupo de teatro comunitário (no sentido de pertencer a uma comunidade indígena) tem se sustentado desde 2012 pelo grande apoio e respaldo que Juan Manuel Maiche dá à profissão de ator teatral de seus seis filhos e parece que é o único grupo de teatro com atividade autogerida sustentada na Amazônia equatoriana.

Acho que é estratégico apoiar o Grupo Cultural Yapankam, uma comunidade de membros muito jovens, com idades entre 14 e 23 anos. Juan Manuel tem a visão de que os Yapankam aprendam a tocar instrumentos tradicionais Shuar, que estão se perdendo, e que eles continuem a se apresentar como um teatro político misturado com herança oral, mostrando por comparação mítica os antagonistas contemporâneos que desorganizam o mundo e os heróis que restauram a ordem no mundo. Outros temas ou buscas pessoais de jovens atores e atrizes não interessam a Juan Manuel; espero que o grupo tenha força suficiente para resistir às influências de artistas ou gestores culturais que desejam impor conteúdos simbólicos exógenos aos princípios do Grupo Cultural Yapankam. Juan Manuel diz que apoiará Yapankam enquanto viver.

Eu me pergunto como seria se um país como o Equador tivesse orgulho de sua herança intercultural ou se o mundo tivesse orgulho de sua diversidade cultural, como seria se toda criança latino-americana pudesse realizar pela primeira vez no teatro encenando uma narrativa milenar de povos originários, camponeses, negro, chineses etc. E se todos nós soubéssemos as histórias de nossa herança oral, e que os índios não tivessem vergonha de manifestar sua identidade em público porque ninguém vai discriminá-los, porque seria credenciada e popularizada equidade e igual valor como compatriotas, como seria?

Nesse sentido, acredito que a arte do teatro é uma ferramenta e uma oportunidade que pode possibilitar a auto visibilidade, contribuir para a conformação da identidade do Equador como nação intercultural. Interessa-me um teatro de reivindicação social, autorepresentação e autoreferência.

Agora, caros leitores, contarei de onde vem essa abordagem ao teatro de povos e nacionalidades. Conheci, há 11, anos o Colégio Oriente Ecuatoriano, instituição de ensino fundamental e médio com internato, na comunidade indígena amazônica Kichwa, de Silva Yacu (província de Sucumbíos, Cantão de Putumayo, paróquia de Palma Roja). Era apenas meu segundo emprego como professor de teatro, a ONG Care fazia o projeto “Direitos e Nacionalidades” e fui contratado pelo Grupo Humor e Vida para facilitar o teatro por uma semana, duas horas por dia. O foco era multicultural, então, isso foi integrado à oficina para participantes mestiços e moradores da escola, de nacionalidade amazônica Kichwa, e o objetivo era representar uma lenda da Amazônia. Tive formação em atuação em teatro dramático e cômico de influência europeia e algum Teatro do Oprimido, com professores muito rígidos.

Minha primeira experiência como facilitador na Amazônia foi bastante complexa, minha formação foi de longos processos, por isso que condensar exercícios e dinâmicas por cinco dias foi difícil e o resultado foi quase nulo; mas me apaixonei pelos rostos, pelas pessoas e pelas maravilhas do campo oriental equatoriano e pelo convite do reitor do colégio.

Ganhei um fundo do Ministério da Cultura do Equador para realizar uma oficina de montagem de seis meses, lá fiz minha estreia realmente como professor de teatro e acabei trabalhando por um ano. No início, continuei a abordar maneiras urbanas, mas com leituras, buscas e conselhos compreendi que cada sessão deve terminar com um produto. E para que o participante leve algo de concreto, devo abordar temas próximos do seu cotidiano, as improvisações devem ser na língua deles, devo ser muito explícito no que falo em espanhol porque há muitas palavras que não entendem da mesma forma, e que o corpo do povo do campo é forte e ágil; entre outras conclusões.

O formato que funcionou em consenso com os participantes foi fazer apenas uma hora de teatro após o horário escolar, desde a primeira aula definir o mito a trabalhar e o resto dos dias ir revisando e corrigindo. Chegamos a nos apresentar com duas peças em duas escolas da zona urbana da capital Cantonal: Puerto el Carmen de Putumayo e nas festas comunitárias organizadas em Silva Yacu.

Diversas oportunidades de compartilhar conhecimentos iniciais sobre teatro com crianças e adolescentes de centros populosos da Amazônia, com duração semanal a mensal, me fizeram perceber que a apresentação pública se constitui como metade do processo de aprendizagem. Os participantes enfrentam uma plateia, conseguem superar o medo do palco e ousam se expor, dando-se a oportunidade de curtir o teatro e receber aplausos. Depois do show, sempre é uma alegria que gritam em seus olhos.

A convivência diária no galpão masculino do internato Silva Yacu, com cerca de 25 pessoas, desde crianças a jovens de até 23 anos, marcou-me profundamente e direcionou meu trabalho teatral. O que vi, o que tive acesso, o que me disseram, o que eu experimentei me marcou para sempre. O mais forte foi ver meninas indígenas (mais tímidas que meninos) no teatro, livrando-se de muitos medos e repressões na exibição pública de conhecimentos aprendidos. Tive também a oportunidade de ver a preparação da “chicha”, a entonação das suas canções sagradas, histórias antigas, anedotas de caça às feras e a cura da “maldição”. Na cosmovisão de mundo Kichwa amazônico, uma pessoa pode contratar um bruxo para causar uma maldição ou a morte de outra pessoa. Um adolescente de Silva Yacu estava doente, pálido e com diarreia, seu irmão mandou buscar um feixe de folhas de Chilca, e o levou ao banheiro masculino para que nenhuma mulher visse a cura. Passou o feixe de Chilca pelo seu cocuruto, por uma hora e meia, ao final da qual o jovem recuperou sua aparência e foi curado da diarreia – já o irmão que curou ficou com fortes dores no braço.

Dois meses depois de ser o “professor de teatro” na Silva Yacu, alguns alunos confiantes me contaram experiências tristes que os afetaram profundamente por serem camponeses no meio de exércitos em guerra pelo poder. Esses testemunhos me penetraram e me levaram a encontrar uma maneira de contar essas histórias.

Nasceu assim “Kay Pacha”, uma peça que encena as confissões dos meus alunos em Silva Yacu, para tornar visível uma realidade muito afastada das cidades do Equador. Atualmente, é um espetáculo de curta duração, com 20 minutos, partilhei-o em vários espaços urbanos e áreas rurais no Equador e na Colômbia no Festival de Teatro Alternativo de Bogotá e no Festival Teatrizate de Riohacha.

No final da minha experiência em Silva Yacu, fiz um workshop de criação coletiva com Santiago García e Patricia Ariza do grupo de teatro colombiano La Candelaria. Depois viajei para Lima, no Peru, para estudar com o Grupo Cultural Yuyachkani. Já tinha ouvido falar muito sobre esses dois incríveis grupos de teatro, quando vi seus trabalhos em meu país há alguns anos fiquei maravilhado. Estar em contato direto com eles me marcou.

Com a ajuda de Iberescena e a coordenação de Patricia Ariza, iniciei minha primeira dramaturgia, começando com alguns workshops em Quito, onde conheci Victoria Valencia (de Medellín) e Ana Harcha (do Chile). Li muitas publicações de ONGs de direitos humanos do Equador, como o INRED, Missão Scalabriniana, entre outras.

Kay Pacha” é um conjunto de impulsos e fragmentos e em 2012 fui informado que a minha obra foi incluída no livro Dramaturgia de Iberescena/Antología, da Editorial Paso de Gato.

A dramaturgia de “Kay Pacha” foi analisada por Lîlâ Bisiaux em 2018. Seu artigo: The Epistemic and Aesthetic Disengagement of Decolonial Theatre, menciona: “Através da análise de ‘Kay Pacha’ … eu determino as características definidoras de uma obra decolonial. Ao fazê-lo, realizo um estudo epistêmico e estético. O tipo de abordagem empírica enfatiza o viés europeu das ferramentas dramatúrgicas, que são inúteis para entender uma obra decolonial”.

Meu festival teatral intercultural Aranwa Raymi Festival nasceu de três ingredientes que me comoveram profundamente: 1. Testemunhar a peça “Jayeechi”, de indígenas Wayuu do departamento de La Guajira Colombiana; 2. Assistir à peça “Egoro”, um conjunto teatral com artistas indígenas de Cali, e 3. Participar do Festival de Teatro Alternativo de Bogotá. Realizamos cinco edições presenciais e em junho deste ano realizaremos a 6ª edição, virtualmente.

O Festival Aranwa Raymi tem como objetivo compartilhar e divulgar estímulos estéticos e interculturais relevantes na província de Sucumbíos e Morona Santiago, para mais do que outras províncias amazônicas e no resto do país, a fim de incentivar a prática artística e contribuir para o desenvolvimento integral de prioridade das populações perto da fronteira norte. A programação oferece: 1. Apresentações teatrais (teatro, interdisciplinaridade), 2. Oficinas de formação artística inicial não-formal e 3. Atividades acadêmicas; contribuindo para a promoção da prática cênica teatral, dançante e musical na infância, puberdade, adolescentes, jovens, adultos e idosos, bem como a criação artística vocacional, amadora ou profissional.

A ideia é promover a revalorização da identidade, a reapropriação do conhecimento dos povos e nacionalidades e principalmente da língua ancestral nas comunidades beneficiárias.

Na língua Kichwa, Aranwa significa palco, poema, representação e Raymi significa festa.

Juan Francisco Moreno, de Quito (Equador), é diretor, há seis edições, do Festival Aranwa Raymi Fiesta Teatro. Trabalha como ator, criador, intérprete, dramaturgo, ativista e promotor sociocultural. Realizou obras de teatro, apresentações cênicas e performances em espaços abertos ou fechados. Facilitador de oficinas e montagens para iniciantes em territórios rurais, indígenas, campesinos e fronteiriços.