O que fazer após o fim? Recriar-se.
Emerson Pontes
As histórias, ações e reflexões narradas neste texto nascem e se desenvolvem junto a jovens indígenas: os que sabem que são, os que estão sendo levados a esquecerem que são e os que já esqueceram disto. A perspectiva de narrativa utilizada aqui é a partir dos Rios, por serem estes parte essencial das paisagens geográficas, políticas, culturais, biológicas e sagradas da Amazônia. É o Rio que te conta.
Convido, neste momento, a subirmos lá em cima do barranco. É melhor para ver. De lá, poderemos e precisaremos ver e ouvir o Rio e toda essa paisagem que estamos adentrando: a do agora e a de ontem. Antes de mirarmos o futuro, comecemos pelos passos até aqui.
O Rio foi invadido, aterrado e esquecido
Outras Amazônias passaram a existir após as primeiras penetrações de homens europeus na região. Desde antes de 1542, aventureiros, missionários e caçadores começaram a chegar aos montes à Amazônia em busca de tesouros, fama, almas e escravos. O processo colonial europeu, valendo-se da guerra, da escravidão, da ideologia religiosa e das doenças, provocou na Amazônia uma das maiores catástrofes demográficas da história da humanidade, além de um etnocídio sem precedentes. Milhões de indígenas que habitavam o interior das matas e as margens dos rios amazônicos, foram transformados de maioria em minoria.
Da conquista à criação do Estado, em uma disputa com os povos indígenas pelo poder e territórios, a política do Brasil sempre buscou formas de não reconhecer os indígenas, afastando- os de suas origens. Muitos recursos foram e seguem sendo utilizados: expulsão de aldeamentos, catequização, escravidão, miscigenação e, uma forma não tão recente: os Censos Demográficos. Do primeiro Censo realizado no Brasil, em 1872, denominado “Recenseamento da População do Império do Brasil” até o ano de 1991, quando a categoria “Indígena” é pela primeira vez incluída em um Censo da demografia brasileira, os povos indígenas foram considerados pelo imaginário social e/ou levados a se autodeclarar de muitas formas: caboclos, ribeirinhos, mestiços, pardos. Pessoas cujas identidades são traçadas como o indígena que vive no campo ou na cidade e que não tem mais a aldeia, sendo miscigenado ou não.
Habito o Amazonas, um dos estados com maior população indígena do Brasil, e simultaneamente o Estado com maior autodeclaração censitária de pardos. Geralmente somos reconhecidos por pessoas externas ao nosso território como “índios”, e isto para grande parte da população gera repulsa. Pergunto: com um imaginário repleto de estereótipos, tal como os de que o indígena é preguiçoso, selvagem ou mesmo inexistente no século XXI, como se interessar por esse resgate?
O Rio não morreu, ele dá muitas voltas
Estamos em abril do ano de 2021 e hoje vivem e [re]existem na Amazônia cerca de 180 povos indígenas, somando uma população de aproximadamente 208 mil indivíduos, além de 357 comunidades remanescentes de quilombolas, de seringueiros, ribeirinhos ou babaçueiros – todas que passam a ganhar visibilidade e reconhecimento de seus direitos somente a partir da década de 80.
Sabemos que na base dos conhecimentos das comunidades tradicionais, predominam os saberes herdados das populações indígenas que habitam a região, desde momentos que antecedem ao processo de colonização. Mas “base” pode ser uma palavra que diz tudo ou nada. Aqui, a base herdada e expressa de forma tão singular pelas comunidades tradicionais atuais poderá ser compreendida como os seguintes elementos e processos: as formas de comunicação; os tipos de habitação; o transporte pelos rios e florestas; a relação espiritual com os encantados; o uso das representações dos lugares e tempos da vida na relação com a natureza; e as formas de alimentação como o extrativismo, a pesca e agricultura.
Apesar de todas as violências, distanciamentos e apagamentos, é extensa e representativa a base ancestral indígena para a vida das populações tradicionais atuais da Amazônia. Isto indica que diversos mapas cognitivos que orientam as ações humanas na região constituem meios pelos quais novos mundos e Amazônia foram reinventados, reforçando ou transformando perspectivas dos antepassados indígenas desta região.
Por quatro anos transitando entre centenas de comunidades de beiras de rios (ribeirinhas) no estado do Amazonas e em interlocução com territórios vizinhos, pude perceber que a Amazônia hoje, através do esforço de muitas lideranças e comunidades locais, percebe a importância e busca o resgate dos saberes e práticas culturais e ancestrais, especialmente a partir do estímulo de suas juventudes. Aqui, apresento mais uma soma a todas estas iniciativas de [re]demarcação indígena dos territórios, imaginários e presentes-futuro.
O Rio voltou a encher
Como experiência vivenciada de teatro e outras linguagens artísticas junto às juventudes indígenas, compartilho um pouco da base e trajetória do Incenturita (Projeto de Incentivo à Leitura, Escrita e Oratória) que se norteia por uma Arte- Educação multidisciplinar e com variadas linguagens artísticas desenvolvido em comunidades indígenas e ribeirinhas no Amazonas. O projeto é desenvolvido pela ONG Fundação Amazônia Sustentável (FAS), com patrocínio do Instituto IAMAR, onde eu pude contribuir como coordenador entre 2018 e 2020.
Histórico
O Projeto Incenturita teve início em 2016, com o objetivo pontual de promover oficinas de leitura e escrita para adolescentes e jovens de comunidades ribeirinhas e indígenas, localizadas em Unidades de Conservação (UCs) do Estado do Amazonas. Em 2017, houve a incorporação do Teatro à rotina de atividade do projeto, a fim de facilitar e estimular as habilidades de leitura e escrita dos jovens. A partir de 2018, o projeto tomou um rumo um pouco diferente. Sem abandonar a meta de estimular a expressão interpessoal dos jovens, a partir de exercícios de leitura, escrita e oratória, ou sem deixar de desenvolver com eles artes diversas, entendidas como instrumentos de expressão cultural, o projeto voltou-se a um novo objetivo principal, que é o de assegurar a preservação da cultura e da identidade indígena e ribeirinha.
Por lidar diretamente com estas populações tradicionais, seu cotidiano, suas memórias e costumes, buscando sempre se alimentar de tudo isto para o fazer artístico, o projeto veio se transformando, a partir de muitas mãos, num catalisador de culturas. O pesquisar, o refletir, o criar e o exibir, que são exercícios da Arte, são entendidos como caminhos que identificam, registram, materializam e garantem a preservação, a transmissão e a valorização de patrimônios culturais, como as histórias, as formas de falar e suas práticas. Diversas atividades passaram a marcar a correalização com as comunidades, especialmente nos campos da literatura (oral e escrita), das práticas e técnicas culturais e da linguagem.
Em paralelo, as oficinas foram se tornando rodas de partilha de histórias ouvidas, vividas ou imaginadas, todas narradas e depois escritas pelos próprios jovens. A documentação do repertório deu início ao Acervo de Histórias de Vida, que é um conjunto físico com mais de 500 narrativas. Uma base que é constantemente alimentada e sempre revisitada como uma inspiração para exercícios de artes, tais como a elaboração de roteiros de teatro ou desenhos da estética de seres encantados.
O projeto vem desde então, através de suas oficinas, possibilitando o intercâmbio de escritores e artistas que viajam às comunidades para o encontro dos jovens, e destes com os anciãos de suas próprias comunidades, que são conhecedores das histórias e técnicas culturais locais. Atividades que favorecem aos jovens o reconhecimento e a apropriação de sua cultura, demonstrada e transmitida em artes no Festival Juventudes Ribeirinhas, que ocorre nas comunidades ao final de cada ano, desde o ano de 2016.
Metodologia
O Incenturita é desenvolvido periodicamente por meio de oficinas mensais que são itinerantes e envolvem as mais de 35 comunidades ribeirinhas ou indígenas onde a FAS atua, incluindo a comunidade Três Unidos, do Povo Omágua-Kambeba, no Rio Negro. Um total de nove Escolas FAS ou Núcleos de Conservação e Sustentabilidade (NCS) existem distribuídos em comunidades de diferentes municípios do Estado e são nestes locais onde o projeto acontece.
O público do projeto é composto por adolescentes e jovens de 10 a 28 anos, residentes de comunidades do entorno, tanto as autodeclaradas ribeirinhas quanto as exclusivas ou mistas de povos como os Tukano, Barés, Tarianos, Ticuna, Desana e Omágua-Kambeba – cujos representantes, em grande parte, são de famílias que imigraram do Alto Rio Negro para o Baixo Rio Negro.
As oficinas são espaços formativos em práticas de autoconhecimento e socialização, como Literatura, Teatro, Artes Visuais, Música e Dança. É nas oficinas onde ocorrem os intercâmbios com artistas, escritores e conhecedores locais – estes representados por pessoas que dominam alguma técnica da cultura local (tingimentos naturais, tecelagem, caça, pesca etc.). Nossos espaços formativos são todos os externos à sala de aula: campos de futebol, as trilhas na floresta, a beira e o interior do rio e demais espaços onde seja possível a interação direta com o ambiente vivo.
As atividades são desenvolvidas sob perspectiva autóctone, ao serem compostas por elementos da própria comunidade: as pessoas, a fauna, a flora, os objetos, as práticas, os espaços, as histórias, o tempo e a linguagem. Deste modo, superam-se os desafios logísticos pela localização das comunidades e a dependência externa a estes locais para suas criações artísticas, garantindo o valor ao que se possui e autonomia para o futuro. A floresta, que é o lar dos jovens, é simultaneamente entendida e incorporada como a base imaterial e de inspiração cultural e a fonte material para a produção das artes, cujo objetivo maior é o de expressar, valorizar e transmitir a sua cultura. Tudo é utilizado e misturado: palhas, histórias, sementes, terra e gente.
Os intercâmbios funcionam como oportunidades de trocas de experiências por meio do encontro de gerações, histórias e saberes, onde os jovens apropriam ou aprofundam os saberes de sua cultura e também se inspiram para pensar em formas criativas que a recriem e a expressem. A cada ano, uma pesquisa com foco em registro, valorização e transmissão da cultura local é codesenvolvida e protagonizada pelos participantes, que utilizam o intervalo entre oficinas para sua execução.
Em 2018, foi criado o livro Fala Beiradão, que apresenta a notória variação linguística entre comunidades ribeirinhas. Este livro teve início após os jovens serem estimulados a pensar sobre os termos e expressões de linguagem únicos de sua comunidade. Na sequência, de forma participativa, estes termos e expressões foram significados e registrados por cada jovem. Todos estes termos, expressões e desenhos foram organizados pela FAS e catalogados para serem incluídos no livro. Paralelo a isto, se construía o Acervo de Histórias de Vida já mencionado, uma segunda pesquisa que reúne mais de 500 histórias escritas pelos jovens em papel, cujo material é base de inspirações e criações artísticas para expressão da cultura. Essas histórias sempre retornam às mãos dos jovens, viajam até as oficinas, ora às suas comunidades de origem, ora a outras comunidades para serem relidas, reconstruídas, costuradas e, principalmente, transformadas em Arte e preparadas para sua apresentação.
Desde 2016, realizamos, a cada fim de ano, o Festival Juventudes Ribeirinhas, que ocorre durante todo um fim de semana e é o momento maior de encontro e celebração do projeto, onde, após horas de viagens pelos rios, reúnem-se dezenas de jovens, famílias, parceiros e comunitários de toda a região e de fora dela, para prestigiarem as apresentações conjuntas dos trabalhos realizados em Teatro e Dança que agregam a Música e as Artes Visuais, preparadas pelos jovens, e nascidas, direcionadas e materializadas a partir de sua cultura local.
Desenvolvimento
O projeto atua com juventudes ribeirinhas principalmente compostas por caboclos, indígenas e negros. No país, sabe-se que “caboclo”, “índio” e “preto” são categorias de classificação social expressas nestes termos, quando em quase todos os usos se reconhece um tom pejorativo. Grande parte da juventude ribeirinha inicialmente encontrada pelo projeto possui baixa autoestima devido ao racismo estrutural da sociedade, e um intenso desejo pela vida e “identidade” urbana. Nas suas comunidades, natureza e cultura são um todo que atravessa de forma tão natural o cotidiano ribeirinho, que muitas vezes passa despercebida ou até desvalorizada.
Moradores de comunidades geograficamente isoladas, às vezes, até dias de distância da cidade, é comum jovens indígenas e ribeirinhos abandonarem desejos de expressão de sua cultura por meio da Arte devido o entendimento de que esta é feita unicamente sob os moldes urbanos, utilizando materiais sintéticos não disponíveis onde vivem. Grande parte dos jovens hoje envolvidos no projeto compreendia a produção de uma peça teatral, por exemplo, principalmente como algo inspirado numa história distante, com figurinos feitos de tecidos caros e apresentados em um grande teatro. Mesmo a literatura, tão viva nos contos do cotidiano indígena e ribeirinho, era igualmente compreendida como algo distante de sua realidade, apenas como elemento das aulas de português, sob uma estrutura muito sofisticada, até inacessível.
Para estes jovens, as culturas indígenas e ribeirinha são vividas, mas ainda pouco identificadas, refletidas, documentadas, promovidas, transmitidas e valorizadas. O Projeto Incenturita atua principalmente com o repertório de histórias, linguagem, práticas e atividades culturais ribeirinhas e indígenas. Nas oficinas de intercâmbios e pesquisas busca-se estimular que os jovens revisitem e se aprofundem em sua cultura para dela se inspirarem, criarem e exibirem artes, para as apresentarem nos festivais e em livros, popularizando sua cultura para mantê-la viva.
Esta tem sido a missão do Projeto Incenturita, que garante a perpetuação das culturas de beira de rio por meio da arte e que é desenvolvida de forma colaborativa por muitos parceiros. Além da FAS e dos jovens, também são envolvidos nestas ações, lideranças comunitárias, famílias, moradores e escolas ribeirinhas – representadas por professores e gestores atuantes via Secretarias de Educação Municipal e Estadual, parceiras do Incenturita. Vale ressaltar que os apoios institucionais são mediados por termos de cooperação e que a maioria dos parceiros é voluntário, a exemplo das muitas mães e pais que atuam como cozinheiras ou canoeiros, apoiando e garantindo a participação das suas filhas e filhos no Projeto Incenturita.
O que se ouve diretamente das famílias e professores que convivem com os jovens é que estes estão menos tímidos, exibindo maior expressão interpessoal e melhor autoestima, criando com autonomia artes para expressão de sua cultura, se inspirando e utilizando o que têm no quintal e dentro de si: a floresta, o rio, as culturas indígenas e ribeirinha.
Resultados
Ao todo, o Projeto Incenturita já atuou com mais de 300 adolescentes e jovens, de 211 famílias, residentes em mais de 35 comunidades ribeirinhas e indígenas, localizadas dentro de Unidades de Conservação, de leste a oeste do Estado do Amazonas: 1. Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Amanã, município de Maraã; 2. RDS do Juma, município de Novo Aripuanã; 3. RDS do Rio Negro, município de Iranduba; 4. RDS de Mamirauá, município de Uarini; 5. Área de Preservação Ambiental do Rio Negro, município de Manaus. Nestes locais, já foram realizadas 67 oficinas de formação dos jovens, a contar as 15 oficinas desenvolvidas em 2019, que oportunizaram a viabilização de 9 intercâmbios destes com artistas, 2 intercâmbios com escritores (nas áreas de Crônicas e Contos) e um total de 6 intercâmbios com conhecedores locais das comunidades, cobrindo os seguintes temas e técnicas: tinturas naturais, fazer manual, danças de beiradão, remédios naturais, trançados de palhas e manejo de madeira.
Duas pesquisas já foram desenvolvidas com os jovens: uma sobre termos e expressões da linguagem que gerou o livro Fala Beiradão, criado em 2018 e lançado em 2019, com mais de 60 termos e expressões apresentados juntos a mais de 100 desenhos pesquisados e produzidos pelos participantes; a outra pesquisa sobre as histórias tradicionais que gerou o Acervo (físico) de Histórias de Vida, amplamente utilizado nas oficinas, e que em 2020 foi transformado no livro Conta Beiradão, que reúne mais de 60 histórias contadas pelos jovens e ilustradas pela artista indígena Auá Mendes.
Para além dos livros citados – ambos de autoria assinada por todos os jovens do projeto, uma terceira publicação foi produzida: a Coleção Folhe Arte, que reúne os dois anos de experiência em educação artística validada em campo com os jovens, em quatro cadernos com 50 atividades práticas, voltados a educadores que atuam em comunidades indígenas e ribeirinhas do interior da Amazônia. Em 2019, o livro Fala Beiradão foi finalista do Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade que prestigia, em caráter nacional, as ações de preservação do patrimônio cultural, e em 2020, o Projeto Incenturita como um todo também chegou à final desta importante premiação.
Um total de cinco edições do Festival das Juventudes Ribeirinhas, a contar a edição de dezembro de 2019, que somadas à apresentações de espetáculos dos jovens nas cidades de Novo Aripuanã (2016) e Manaus (2017) chegaram a reunir um público total de 1.750 pessoas que puderam prestigiar e conhecer mais as culturas indígenas e ribeirinha. Tais indicadores ressaltam o impacto do projeto que pode ser mensurado através de números, mas somente a convivência formativa e criativa com os jovens revela o imensurável pelos números e demonstrável por ações, que é o seu maior orgulho e compromisso que possuem hoje, de serem quem são e estarem onde estão: o beiradão.
O Rio seguirá seus cursos
E são muitos os caminhos possíveis. O que desejamos e vivenciamos com a realização do Incenturita é que os caminhos indígenas herdados, que fizeram nascer e trouxeram toda esta gente até aqui, permaneçam visíveis aos olhos e também presentes nos imaginários da beira de rio e para além deles. Trata-se da formação e envolvimento de jovens que refletem e produzem com autonomia artes de diferentes linguagens, todas autorreferenciadas e produzidas com o que nasce em seu quintal, para contarem ao próprio povo e para os tantos outros, não apenas a sua cultura como a conhecem hoje, mas também anunciarem a recriação de mundos, com valor e alegria.
Os encantados, ora demonizados por um Teatro voltado à catequização, hoje retornam ao cotidiano de muitos territórios- gente, protegendo e abençoando as matas e as comunidades de seu ventre. Encontro das Águas Quem lhe escreve este relato sou eu, Emerson, indígena sem um povo identificado até o momento, cujo passado e linhagem foram apagados pelo colonialismo. Sou como muitos dos jovens que ajudo a educar e me educam: um corpo-vivência atravessado pela diáspora indígena, processo que embora ainda pouco discutido, é tão contundente e representativo na construção e cotidiano do Brasil. É por isso que me identifico e me movo por cada jovem, para que sigam suas jornadas sabendo de onde vieram, mesmo que o passado preciso, esteja ou permaneça nebuloso.
Sou gente, mas às vezes viro árvore. E ela anda. Esta é Uýra, que gosto de chamar carinhosamente de Árvore que Anda. Meu espírito a compreende como uma entidade, com que convive, e que às vezes utiliza meu corpo como suporte, o guiando, provocando e protegendo. Como um canal de fala e escuta, Uýra habita a paisagem híbrida dos opostos. É onde coisas como a cidade e a floresta se encontram: se complementando ou tensionando. Se veste com mato e outros materiais orgânicos, para em fotoperformances e performances, contar as histórias das coisas vivas e suas violações, expondo e coletivamente propondo cura às doenças sistêmicas coloniais. É também daqui que nasce o estímulo aos jovens para que utilizem elementos orgânicos da floresta, para que como eu, lembrem o que são: natureza, que é bonita, sagrada e diversa, independente da padronização do mundo externo às suas comunidades – que também é seu, é nosso.
Como eu, estes jovens também têm origem e habitam as periferias do mundo. Nestes locais é fácil esquecer da própria importância. Por isso, agimos para que os jovens se vejam com valor, sabendo que podem se inspirar, refletir e agir a partir dos seus territórios, tal como Anderson, meu professor do Ensino Médio, que a partir da mesma periferia que eu, me mostrou que podemos alcançar tudo o que quisermos. Hoje o que faço é replicar este olhar no espelho.
Tenho a impressão que hoje, mais que no passado, os diferentes mundos da Terra desejam dialogar. Incentivo os jovens para que falem aos mundos, tudo aquilo que o seu coração-território lhes pedir, tudo aquilo que o espírito lhes bem conduzir. Suas histórias, denúncias, opiniões, tudo. É sobre já começarem a ter espaços no mundo daqui para a escuta do mundo de lá. É um “lá” e um “aqui” que podem e precisam conversar.
Sabe o que mais me atravessa pessoalmente de tudo que contei até aqui? Nenhuma destas reflexões estava pronta antes dos nossos encontros.
Foi este encontrar de rios, que sou eu e cada jovem, que me fez enxergar a importância do vivido, vivendo; que permitiu ver melhor a mim e aos meus parentes; e também ver aquilo que o Rio sempre mostrou: ele pulsa forte porque se move e tem história; ele se encontra porque está conectado; o Rio é o Rio, tem memória ancestral como a gente – que nunca morre.
Para conhecer mais do Projeto Incenturita:
https://www.youtube.com/watch?v=g2-YUTgqAYM&t=181s
Download do livro Fala Beiradão:
https://fas-amazonia.org/novosite/ wp-content/uploads/2020/11/fala-beiradao.pdf
Produções artísticas de Uýra (Emerson):
https://www.flickr. com/photos/156456635@N08/albums
Para conhecer mais do Festival Juventudes Ribeirinhas:
https://www.youtube.com/watch?v=8HOx3Youq4U
AUTOR
Emerson Pontes é um artista visual indígena. Reside em Manaus, onde se transforma para viver Uýra, uma manifestação em carne de bicho e planta que se move para exposição e cura de doenças sistêmicas coloniais. Através de elementos orgânicos, utilizando o corpo como suporte, encarna esta árvore que anda e atravessa suas falas em fotoperformance e performance.