Isto é um sonho ou é real? (Lamah Z. Khouri)
Este texto é parte de um projeto editorial construído em uma parceria entre o coletivo desorientalismos, a n-1 edições e o Núcleo Psicanálise e Laço Social no Contemporâneo (Psilacs) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Uma seleção de textos que aborda a Questão Palestina em um diálogo com a Psicanálise e outras áreas do conhecimento, como a História, Filosofia, Sociologia e Saúde Mental. A cada quinze dias, um novo texto será lançado.
Uma reflexão psicanalítica sobre a inação e o impasse
Sou uma psicanalista palestina-jordaniana radicada em Nova York. Minha jornada no campo da psicanálise não foi convencional. Minha carreira começou nos corredores da Organização das Nações Unidas (ONU), onde passei 14 anos, a maior parte como Oficial de Assuntos Políticos no que era o então chamado Departamento de Operações de Manutenção da Paz.
Entrar para a ONU aos vinte e poucos anos, no crepúsculo da Guerra Fria, incutiu em mim uma profunda crença na possibilidade de um mundo justo e em paz. Por fim a parálise do Conselho de Segurança se suspenderia e o órgão seria capaz de cumprir seu mandato, pensei. Os princípios consagrados na Carta da ONU e o poder do direito internacional não eram apenas conceitos teóricos para mim; eram faróis de esperança. Minha convicção era que se o mundo pudesse testemunhar em primeira mão os crimes do Estado colonial contra o povo palestino — para além das distorções e manipulações — um desenlace justo seria inevitável. No entanto, os últimos cinco meses esmagaram meu coração e dissiparam minha esperança antes inabalável. Percebi com grande dificuldade que minha crença em um mundo justo era, talvez, ingênua. Testemunhar a extensão da crueldade e indiferença humanas me deixou desiludida, questionando a própria essência da humanidade e da justiça.
Este artigo nasce de uma necessidade profunda de lidar com o incompreensível — de dar sentido ao absurdo. Simplesmente afirmar que os palestinos são desumanizados, atribuir o genocídio em curso a contingências históricas ou reduzi-lo a “realpolitik” parece totalmente inadequado. Essas não são justificativas, mas sim evasões de responsabilidade pelos crimes cometidos contra um povo que vêm sendo despossuído e oprimido por muito tempo. Por meio de uma lente psicanalítica, procuro explorar e compreender as maquinações globais que atualmente parecem estar além da compreensão. Espero que esta formulação possa oferecer uma nova perspectiva sobre a cumplicidade aparentemente abominável do Conselho de Segurança; e que o artigo forneça insights sobre as profundezas da natureza humana e as complexidades do cenário mundial.
Isto é um sonho ou é real?
Entre os vários vídeos que retratam o que foi denominado como um “caso exemplar de genocídio”, um se destaca de forma preponderante. Nessa angustiante filmagem, uma garota está deitada em uma maca, aparentemente recém-resgatada dos destroços de sua casa. Coberta de poeira cinza e com ferimentos superficiais no rosto, os paramédicos trabalham diligentemente para limpá-la dos escombros e cuidar dos ferimentos. Num momento de vulnerabilidade de cortar o coração, ela pergunta:
“Tio, tio. Quero te perguntar uma coisa”
“Pergunte, minha querida”
“Isto é um sonho ou é real?”
A pergunta da menina não apenas destaca a realidade traumática que as crianças de Gaza estão vivenciando em meio às atrocidades em curso, como também captura o profundo choque e descrença sentidos pelos palestinos e seus aliados em relação à indiferença e inutilidade de atores e entidades internacionais, particularmente o Conselho de Segurança da ONU, em impedir o genocídio. Para aqueles entre nós que antes tinham alguma fé nos princípios do direito internacional, dos direitos humanos e da decência humana básica, esse fracasso abismal serve como um duro despertar, deixando-nos profundamente desanimados e desiludidos. A abordagem necropolítica da comunidade internacional deixa à mostra os critérios para decidir quais vidas valem a pena ser salvas. Essa revelação se desenrola no contexto do genocídio em Gaza, transmitido ao vivo, que sublinha uma grave falha moral.
A ausência de uma ação decisiva por parte da comunidade internacional, particularmente do Conselho de Segurança da ONU, para pôr fim às atrocidades em Gaza é profundamente preocupante. O Conselho está dotado tanto de autoridade legal quanto de capacidade militar para pôr fim a esse genocídio e responsabilizar os perpetradores. A pergunta perturbadora da garota no vídeo — “Isto é um sonho ou é real?” — coloca um dilema significativo: como é possível observar tamanha destruição, sofrimento e dor generalizados e, ainda assim, permanecer indiferente e passivo?
O inconsciente normativo e as Nações Unidas
O “inconsciente normativo” de Lynne Layton pode fornecer um marco útil para entender a aparente indiferença do Conselho de Segurança da ONU. Layton aplicou esse conceito para descrever como fatores socioculturais e discurso político são internalizados, moldando nossa identidade e consciência. Ela ainda esclareceu como esses fatores influenciam nossas comunicações interpessoais e relações subjetivas e intersubjetivas.
Na arena das relações internacionais, o inconsciente normativo é o resultado de viver em um mundo no qual as normas servem ao “propósito ideológico dominante de manter o status quo”. Os Estados-membros do Conselho de Segurança da ONU operam em um sistema que eles criaram
(consciente ou inconscientemente) para manter seu poder. Por exemplo, raramente questionamos algo tão simples como o motivo pelo qual a Europa está no centro de qualquer mapa do globo e o resto do mundo é representado em relação a ela.
O inconsciente normativo do Conselho de Segurança da ONU aparece em questões sistemáticas e estruturais, cuja sombra já é evidente em sua Carta fundacional — particularmente em sua concepção do Conselho e seus poderes. Embora a criação do Conselho pela Carta da ONU visasse ostensivamente evitar outra guerra mundial, ela refletiu efetivamente uma visão eurocêntrica, orientalista e binária da raça humana e das relações internacionais — “nós” e “eles”. A própria Carta da ONU é falha: embora comece com “Nós, os Povos das Nações Unidas”, seu subtexto implica que, embora “todas as pessoas sejam iguais, algumas são mais iguais que outras”, parafraseando George Orwell.
O inconsciente normativo imperioso do Conselho de Segurança da ONU (particularmente o de seus membros permanentes, o principal deles os Estados Unidos) está sendo repetidamente exposto. Isso vem sendo evidenciado recentemente pela reiterada afirmação dos Estados Unidos de que Israel tem o direito de se defender, ficando subentendido que esse direito se estende a “assassinar mais de 1300 crianças e tornar 17 mil delas órfãs”.
Ao estruturar o Conselho de Segurança da ONU de forma que os cinco membros permanentes da organização sejam os únicos com poder de veto, a Carta da ONU parece implicar que esses membros são completamente racionais e psicologicamente sólidos. Isso também pode implicar que elas são as únicas nações nas quais se pode confiar a tarefa de proteger a humanidade da autodestruição. Consequentemente, a “outra” parte do mundo (“o Oriente”, na terminologia de Said) é apresentada como psicologicamente volúvel, fraca, feminizada e irracional e, portanto, não pode ser confiável para a perpetuação da raça humana. Além da China, cuja inclusão no Conselho de Segurança da ONU seguiu uma racionalidade e uma trajetória distintamente diferentes, os outros quatro Estados-membros do Conselho de Segurança da ONU são europeus ou quase europeus em seus valores e estruturas.
Em relação a esses quatro membros, como Said argumentou, “o mundo não europeu contém apenas nativos, e ‘as mulheres com véus, as palmeiras e os camelos compõem a paisagem, o pano de fundo
natural para a presença humana (das potências coloniais)’”. O preconceito e a subumanização, em grande parte velados, do Conselho de Segurança da ONU em relação às nações em desenvolvimento ou colonizadas são colocados em foco quando se compara sua reação ao Genocídio de Ruanda em 1994 com a do 11 de setembro. Em menos de 24 horas, em 12 de setembro de 2001, o Conselho de Segurança da ONU emitiu uma declaração presidencial dura e resoluta condenando o ataque que resultou na morte de quase 4 mil pessoas. Somente no caso de Ruanda (e agora Gaza), o Conselho de Segurança da ONU e, segundo consta, o Secretariado da ONU, mesmo com evidências de que um genocídio era iminente, não tomaram nenhuma medida enérgica para impedi-lo.
O palestino como referente ausente
O termo referente ausente de Carol Adams é um conceito crítico na teoria feminista e dos direitos dos animais, originalmente usado para descrever como a realidade da vida e das experiências dos animais se torna invisível ou abstraída no contexto de seu consumo. Em seu trabalho, Adams argumenta que a linguagem e as práticas em torno do consumo de carne obscurecem os próprios animais, transformando-os em objetos ou mercadorias em vez de reconhecê-los como seres vivos. Por exemplo, quando falamos de bacon ou carne suína, o porco — o animal real cuja vida foi tirada — é o “referente ausente”. A existência do animal é apagada da nossa consciência, facilitando uma desconexão entre o ser vivo e o produto consumido, tornando o ato de consumir carne mais palatável e menos problemático eticamente para os indivíduos.
Expandindo esse conceito dentro do contexto do Conselho de Segurança das Nações Unidas e sua visão do Hamas e sua resistência, a noção de referente ausente de Adams pode nos ajudar a entender a complacência do Conselho de Segurança da ONU. Aqui, o Hamas é condenado e culpado pelo Conselho sem que sejam reconhecidos os crimes de Israel, sem um profundo envolvimento com a história e sem reconhecer a necropolítica do Estado colonial por povoamento. A evidência da ausência de tal engajamento é a referência repetida de que o dia 7 de outubro de 2023 é a causa do genocídio. Assim como o porco se torna um “referente ausente” no contexto do consumo de carne suína, os membros individuais da resistência armada palestina e suas motivações complexas se tornam “referentes ausentes” em políticas e resoluções relativas à Palestina em geral e a Gaza em particular.
Ao rotular o Hamas e a resistência armada palestina de forma mais ampla como organizações terroristas, sem reconhecer as violações e crimes do Estado colonial contra os palestinos, oculta-se os motivos das ações de tais entidades. A abordagem do Conselho de Segurança efetivamente apaga a humanidade do povo palestino. Esse apagamento da narrativa e da história torna mais fácil justificar crimes de guerra e assassinatos sem enfrentar a tarefa mais desafiadora de entender e abordar as questões subjacentes que levaram à formação e persistência da resistência.
O conceito de “referente ausente” fornece, portanto, uma lente poderosa através da qual podemos criticar nossas desconexões éticas e as práticas políticas e institucionais mais amplas que desumanizam e simplificam conflitos humanos complexos. Ao traçar esse paralelo, este ensaio convida a uma reflexão mais profunda sobre como entidades como o Conselho de Segurança da ONU se envolvem com o conceito de terrorismo e as implicações desse envolvimento tanto para a formulação de políticas quanto para a possibilidade de alcançar paz e segurança duradouras.
A “permissão para narrar” de Edward Said pode ser interpretada através da lente do “referente ausente” no que se refere ao povo palestino e seu lugar nas narrativas globais. No ensaio, Said discute os desafios que os palestinos enfrentam para ter suas histórias, perspectivas e sofrimentos reconhecidos e legitimados na arena global, especialmente na mídia e no discurso ocidentais.
Segundo Adams, o conceito de referente ausente enfatiza o apagamento ou a invisibilidade de assuntos específicos em contextos específicos. Aplicando isso ao argumento de Said, os palestinos se tornam os referentes ausentes nas narrativas construídas sobre o Oriente Médio, em que suas experiências, direitos e aspirações são frequentemente ofuscados ou omitidos completamente. Esse apagamento facilita uma representação simplificada e distorcida do conflito que frequentemente marginaliza as vozes palestinas, reduzindo sua história complexa e suas lutas a meras notas de rodapé em uma narrativa predominantemente centrada em Israel.
A crítica de Said é fundamentalmente sobre poder, representação e voz, temas que ressoam com o conceito de referente ausente. Assim como os animais são deixados de fora das discussões sobre o consumo de carne, os palestinos são deixados de fora de muitas narrativas que moldam percepções e políticas internacionais. Essa ausência não se refere apenas à negligência; trata-se da negação de agência, do silenciamento de vozes e da invisibilidade de reivindicações e queixas legítimas.
Ao enquadrar os palestinos como referentes ausentes, podemos entender melhor os mecanismos de exclusão e marginalização que operam na mídia, na política e na academia. Essa perspectiva exige uma reconsideração de quem tem permissão para falar, quais narrativas são legitimadas e como essas dinâmicas moldam nossa compreensão de conflitos e crises. “Permissão para narrar”, de Said, desafia os leitores a reconhecerem e questionarem essas ausências, defendendo uma abordagem mais inclusiva que reconheça e incorpore as narrativas palestinas como parte integrante do discurso mais amplo sobre o Oriente Médio.
Assim, ver os palestinos como referentes ausentes nos assuntos mundiais enriquece nossa compreensão da dinâmica de poder em jogo na construção de narrativas e destaca a importância de lutar por um discurso mais equitativo e representativo.
“Negação da morte” e a moralidade das nações
“Negação da Morte”, de Ernest Becker, propõe que grande parte do comportamento humano pode ser reduzido a uma tentativa de negar e transcender nossa consciência da mortalidade. Esse medo existencial pode levar indivíduos e, por extensão, Estados-nação a buscar a imortalidade simbólica ou literal por meio de ações que afirmam poder, importância e um legado duradouro. No contexto dos Estados-membros do Conselho de Segurança da ONU, essa teoria sugere que a conscientização sobre sua mortalidade pode motivar ações que previnam ou contribuam para atrocidades. A busca por legado, influência e poder nacionais leva os Estados a se envolverem em ações que justificam como necessárias para sua sobrevivência ou supremacia, potencialmente anulando considerações morais contra a prática de atrocidades.
“A mortalidade e a moralidade das nações”, de Uriel Abulof, explora ainda mais como a ansiedade existencial das nações influencia suas escolhas morais e ações políticas. Abulof argumenta que o medo do esquecimento nacional pode levar os Estados a priorizarem sua sobrevivência e seus interesses de maneiras que muitas vezes entram em conflito com princípios morais universais. No contexto do Conselho de Segurança da ONU e sua resposta a genocídios ou a atrocidades, essa perspectiva sugere que os Estados-membros podem priorizar seus interesses nacionais, alianças estratégicas e dinâmicas de poder em detrimento de imperativos morais de intervenção. O medo de perder influência ou de enfrentar consequências negativas pode superar o dever moral de prevenir ou
impedir atrocidades, mesmo que tais atrocidades incluam violações grotescas de direitos humanos, degradação e destruição.
A tolerância demonstrada pelos Estados-membros do Conselho de Segurança da ONU em permanecerem como espectadores durante um genocídio pode ser interpretada por essas lentes como uma interação complexa de negação da morte, medo existencial, interesse nacional e limitações da política internacional. A estrutura do Conselho de Segurança da ONU e o poder de veto desempenham papéis significativos na forma como as decisões são tomadas ou adiadas, muitas vezes refletindo os interesses estratégicos e as preocupações existenciais de seus membros permanentes, em vez de julgamentos morais imparciais.
Enquadrar as ações e omissões dos Estados-membros do Conselho de Segurança da ONU no contexto de suas ansiedades existenciais e sua negação da mortalidade não deve minar o reconhecimento das questões profundamente arraigadas do racismo e de uma abordagem necropolítica nas políticas do conselho. Achille Mbembe cunhou o termo necropolítica, que se refere à autoridade e capacidade de entidades soberanas de determinar quem pode viver e quem deve morrer. Essa estratégia ficou evidente no envolvimento seletivo e nas respostas do Conselho de Segurança da ONU às crises internacionais. A realidade é que as ações ou omissões do conselho, influenciadas pelos interesses estratégicos e pela dinâmica de poder de seus membros, tiveram efeitos devastadores sobre as populações, particularmente no Sul Global. Reconhecer o papel do medo existencial e a busca por legado ou sobrevivência não nega a responsabilidade do Conselho de Segurança da ONU de agir de forma justa e ética. Nem exonera seus membros dos impactos de suas decisões, que muitas vezes priorizam interesses políticos em detrimento da santidade da vida humana.
O palestino e o infamiliar
A exploração de “O infamiliar” por Sigmund Freud mergulha no reino psicológico de experimentar algo como familiar e estranho, evocando uma sensação de desconforto. Embora o trabalho de Freud se concentre na psicologia individual, seus princípios oferecem um referencial teórico pungente para compreender fenômenos sociais e políticos, como a necropolítica. Para Freud, o que é estranho é a visão de algo familiar que também carrega elementos do desconhecido ou sinistro. A perspectiva teórica da necropolítica e a estrutura da explicação freudiana do infamiliar são especialmente relevantes na análise do fracasso do Conselho de Segurança da ONU em garantir um cessar-fogo permanente em Gaza. em meio a ações e declarações genocidas de várias autoridades israelenses.
Mbembe articula que a capacidade de exercer domínio sobre colônias por meio de estados de exceção (isto é, por meio da suspensão da lei a serviço do que é percebido como o bem do grupo) é baseada na negação racial de qualquer humanidade compartilhada entre o colonizador e o colonizado. Na visão do colonizador, a vida do “selvagem” é reduzida a uma mera existência animal. Para o colonizador, então, o encontro com o colonizado é profundamente perturbador, pois o colonizado é percebido como totalmente estranho e incompreensível. Esses “selvagens” são vistos como humanos “naturais”, despojados das qualidades que constituem uma essência distintamente humana.
Essa desumanização e racismo, que são elementos centrais da teoria necropolítica de Mbembe, podem ser produtivamente ligados ao conceito de infamiliar de Freud, enfatizando um profundo sentimento de alienação ou outrificação.
O infamiliar — conforme descrito por Freud e potencialmente fundamental para a necropolítica de Mbembe e a capacidade das nações de declarar vidas não dignas de luto, para usar a formulação de Judith Butler — surge da experiência paradoxal de algo ser ao mesmo tempo assustadoramente familiar e estranho. Essa dualidade evoca um sentimento de desconforto porque é ao mesmo tempo reconhecida e estranha. Nesse contexto, o palestino, como diz o psicanalista Sverre Varvin, “apresenta-se como uma entidade desconhecida e de alguma forma conhecida, cujos atributos humanos são minimizados ou completamente apagados”. No contexto desse genocídio em andamento, o infamiliar pode ser o resultado de uma interação inconsciente que incorpora o conceito de Freud, em que há um reconhecimento e uma negação simultâneos da humanidade do outro, fazendo com que o “outro” pareça conhecido e assustadoramente estranho. Essa interação se reflete na retórica do Estado sionista, como exemplificado pelas declarações genocidas das autoridades. A manipulação narrativa resultante aproveita o infamiliar para justificar políticas, retratando os colonizados como assustadoramente familiares, mas fundamentalmente estranhos, racionalizando, assim, sua subjugação e desumanização sob o pretexto de tratar-se de política externa.
A sombra do infamiliar de Freud aparece na abordagem de Netanyahu sobre o genocídio em Gaza, como uma luta entre os “filhos da luz e os filhos das trevas”. O infamiliar também é evidente em sua invocação dos amalequitas, um povo antigo descrito em textos bíblicos como inimigos dos israelitas, a quem Deus ordenou que fossem completamente destruídos. Tais declarações são paralelas à descrição dos palestinos como “animais humanos” feita pelo ministro da Defesa, Yoav Gallant. Todas essas proclamações simbolizam uma retórica desumanizadora que sustenta práticas necropolíticas justificadas por dinâmicas inconscientes que tornam os palestinos estranhos. Tais declarações não apenas despojam os palestinos de sua humanidade, mas também sancionam implicitamente seu extermínio, ecoando os elementos mais sombrios da lógica genocida.
Contra pesadelos tornados normais
A pergunta feita pela garota no vídeo — “Isto é um sonho ou é real?” — embora aparentemente simples, serve como um chamado crítico à ação que nos desafia a confrontar o horror surreal da inação e da indiferença diante do genocídio. Eu me esforcei para utilizar o pensamento psicanalítico para explorar como tais atrocidades insondáveis podem continuar, alavancando conceitos como o inconsciente normativo, o infamiliar, a moralidade e a mortalidade das nações e o referente ausente.
As teorias psicanalíticas ainda não nos oferecem uma resposta definitiva à pergunta inquietante: “Como é possível permitir que isso aconteça?” No entanto, examinar a interação entre esses conceitos destaca os complexos mecanismos psíquicos e sociopolíticos que fundamentam o fracasso da comunidade global em abordar efetivamente o genocídio em Gaza. Também pode-se argumentar que as relações internacionais são muitas vezes motivadas mais pela busca de vantagens estratégicas e pela demonstração de poder militar ou econômico. Essa realidade representa um desafio ao esforço psicanalítico de descobrir as deficiências morais por trás da inação global, pois pode ignorar o grau em que o princípio de “o mais forte faz o direito” influencia o comportamento dos Estados no cenário internacional. Talvez Israel e os Estados Unidos ajam como agem simplesmente porque podem.
A questão “isto é um sonho ou é real?” exige uma profunda reavaliação de nossas estruturas morais e éticas coletivas, incitando-nos a confrontar as verdades desconfortáveis de nossa inação e indiferença. Somente por meio dessa introspecção e da disposição de desafiar o inconsciente normativo, confrontar a dinâmica misteriosa da desumanização e reconhecer a moralidade e a mortalidade em jogo em nossas interações globais, podemos esperar impedir a perpetuação de tais horrores e trabalhar por um futuro em que os direitos humanos e a dignidade sejam verdadeiramente respeitados para todos.
¹Este trecho é baseado em grande parte de um artigo publicado pela autora em 2019: Khouri L Z. “The Normative Unconscious Of Nations: A critical geopolitical and psychoanalytic perspectives on the United Nations Security Council’s counterterrorism strategy”. International Journal of Applied Psychoanalytic Studies, n. 16, p. 244–257, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1002/aps.1635
²[N.E.] Os números atualizados, em dezembro de 2024, é de 14500 crianças mortas por Israel em toda Faixa de Gaza desde 7 de outubro de 2023. Ver: https://news.un.org/en/story/2024/12/1158206
³O psicanalista Irwin Hoffman escreveu extensivamente sobre a morte e a mortalidade e, acredito, qualquer menção à morte e à mortalidade deve se referir ao seu trabalho.
Texto originalmente publicado na Revista Parapraxis: https://www.parapraxismagazine.com/articles/is-this-a-dream
Tradução: Dafne Melo
Lama Khouri é uma psicanalista palestina radicada em Nova York. É supervisora psicanalítica e diretora de Diversidade, Inclusão e Pertencimento no Instituto de Análise Expressiva. Foi cofundadora da Rede Global de Saúde Mental Palestina e faz parte dos conselhos da Fundação de Saúde Mental de Gaza e da Rede de Saúde Mental EUA-Palestina. Sua experiência anterior inclui uma carreira de 14 anos no Departamento de Operações de Paz das Nações Unidas.