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Grupo Teatral Nação Nativa, intérpretes de sua própria história

Helena Corezomaé

Formado por crianças e adolescentes do povo Umutina-Balatiponé, o grupo Teatral Nação Nativa decidiu interpretar nos palcos a história de seu próprio povo, que foi quase dizimado a partir do contato com os não indígenas.

Apesar de poucos, os Umutina-Balatiponé conseguiram sobreviver, mas tiveram de lidar com as inúmeras “feridas” da violência sofrida desde o contato com os não indígenas, que os levou a não falarem seu idioma tradicional, não praticarem os cantos e nem as danças, que antes eram realizadas por seus ancestrais. Com isso, passaram a sofrer preconceito por parte daqueles que não conheciam a sua história, sendo questionado até a sua origem e identidade.

Por conta do histórico vivenciado por seus ancestrais, os participantes do grupo, que possuíam idades de 5 até 17 anos, decidiram, em consenso, escolher o nome que os identificaria como “Grupo Teatral Nação Nativa”, para reafirmar a sua identidade enquanto um povo nativo do Brasil.

Com uma apresentação de dez minutos que mesclava cantos, performance e danças, os jovens ganharam destaque a partir do ano 2000 pelo trabalho inovador que desenvolveram em Mato Grosso.

 

História do povo se entrelaçada ao do grupo

Habitantes do vale dos rios Bugres e Paraguai, no município de Barra do Bugres, Mato Grosso, outrora, o povo Umutina-Balatiponé era denominado como “Barbados”, por possuírem barbas e cavanhaques.

Já o nome Umutina foi uma herança do contato com o povo Paresi, que foi levado para o território Umutina pelo Serviço de Proteção aos Índios – SPI. Por terem a pele clara, os Paresi os chamavam de “Imuti”, que significa em seu idioma “homem da pele branca”, mas os não indígenas ao ouvirem entendiam a pronúncia como “Umutina” e também passaram a chamá-los assim. Mas o povo se autodenomina como Balatiponé, que significa gente nova.

No final do século XVII e XVIII as frentes de exploração e expansão territorial se intensificaram no estado de Mato Grosso e atingiram em cheio o território tradicional Umutina-Balatiponé o que causou muitos conflitos e epidemias diminuindo a população drasticamente.

Devido a esse processo, os aspectos cultural, material e imaterial do povo Umutina-Balatiponé tiveram muitos prejuízos. Uma das perdas mais significativas foi o silenciamento linguístico. Até por volta das décadas de 1980, o povo Balatiponé-Umutina era pouco conhecido quando então começam os primeiros trabalhos de revitalização e ressignificação cultural.

Foram longos anos para que a cultura Balatiponé se reerguesse, mas com o esforço contínuo de toda a comunidade, em especial dos anciões, lideranças, professores e a juventude, eles conseguiram revitalizar muitos dos conhecimentos ancestrais.

Entre os trabalhos desenvolvidos pela juventude, se destacam as atividades do Grupo Teatral Nação Nativa, que fez pesquisas bibliográficas e, também, com os anciãos do povo para conhecer os cantos, as danças, as pinturas e os adornos usados pelos ancestrais Umutina-Balatiponé.

 

Pré-conceito fomenta o nascimento do grupo

Segundo o jovem mestrando Luciano Ariabo Quezó, um dos membros da Nação Nativa, a criação do grupo foi fomentada após a viagem de uma delegação de sua comunidade para participar da segunda edição dos Jogos dos Povos Indígenas, que ocorreu em 1999, em Guaíra, no Paraná.

Participaram do evento mais de 500 indígenas, de 25 povos, Guarani, Potiguara, Pankararu, Maxacalí, Krenak, Xacriabá, Paresi, Kaingang, Kaiowá, Kadiwéu, Bakairi, Bororo, Erikbaktsa, Kanela, Matis, Krahô, Kayapó, Xavante, Karajá, Jawaé, Kuikuro, Kamaiurá, Yawalapiti, Suyá, Waurá, Terena e os Umutina, que disputaram 13 modalidades esportivas. O evento foi patrocinado pelo Ministério dos Esportes e Turismo, em parceria com a prefeitura local, com o apoio da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Comitê Intertribal.

Sendo um critério para participar dos jogos, de acordo com a organização do evento, a força cultural dos povos, considerando as tradições, como a língua, a dança, os rituais, os cantos, as pinturas corporais, o artesanato e os esportes tradicionais.

“O grupo surge por conta da nossa identidade Balatiponé, na época não se tinha muita informação das danças, das pinturas, dos ornamentos típicos. E fez falta quando o pessoal foi um dos povos que foram participar dos Jogos Indígenas lá em Guaíra, em 1999”, informou Luciano.

Apesar de terem conquistado o primeiro lugar em várias modalidades esportivas da competição, o cacique da comunidade na época, o ancião Valdomiro Ariabo Kalomezoré, voltou da viagem inconformado com a discriminação sofrida por seu povo durante o evento, que partiu até por parte da organização, por não falarem o idioma tradicional, não cantarem, não dançarem e nem se pintarem, mas sem entender todo o contexto histórico que vivenciaram.

Quando voltaram para Mato Grosso, o cacique não conseguia tirar o ocorrido da cabeça, sentiu que deveria fazer algo e mostrar para as pessoas que eles também tinham a sua raiz, que até o momento era desconhecida pelos jovens, mas estava na memória dos anciões de sua comunidade.

Para ir em busca dessa “raiz”, o cacique reuniu jovens, adolescentes e crianças da sua comunidade para que eles fizessem um trabalho conjunto de irem atrás de todo material que encontrassem sobre o seu povo. Cada um ficava com um tema e em encontros semanais eles compartilhavam todo o conhecimento adquirido.

Segundo os jovens, os principais textos encontrados foram escritos pelo etnógrafo e fotógrafo Harold Schultz, que visitou o território Umutina duas vezes, em diferentes períodos, quando passou um tempo entre 21 indígenas Balatiponé, que viviam nas malocas, no interior do território Umutina, sem muito contato com não indígenas.

Outro ancião que foi fundamental para que eles pudessem conhecer sobre os rituais e a história do povo foi Julá Paré, indígena Umutina-Balatiponé que falava o idioma tradicional e conhecia os cantos e danças.

“A gente começou a insistir bastante com Julá Paré para ele orientar o grupo. Nós também conseguimos várias coisas, como fotos, imagens e vídeos. Nós lemos vários materiais do Harold Schultz. E tudo isso em contato com Julá, a gente qualificava tudo com ele. – ‘É isso mesmo?’, questionávamos. E nós fomos saber que existiam 17 cerimoniais, com muitos cantos. Quando Julá estava disposto, ele explicava para nós muita coisa, mas quando ele não estava muito legal a gente ia por conta”, nos conta Luciano.

A cada encontro eles foram conhecendo mais sobre a sua própria história, que foi sendo compartilhada em uma oca, que era usada oficialmente para celebrar os cultos religiosos que aconteciam na Aldeia Umutina.

Um lugar não só de oração, mas de revitalização

O pastor Davi, líder religioso da Igreja da Graça, ao começar um trabalho de evangelização no território Umutina sentiu a necessidade de construir um templo de oração dentro da Aldeia. O formato escolhido foi de uma oca tradicional do povo Paresi, que foi construída em local de destaque no círculo que forma a Aldeia Central.

Nesse espaço, os jovens faziam as reuniões e compartilhavam entre si as informações que conseguiam sobre seu povo, também foi palco das primeiras apresentações do grupo, que puderam ali aperfeiçoar as danças e os cantos.

De acordo com o grupo, o pastor não apenas disponibilizou o espaço, mas foi um grande incentivador dos jovens, que os chamavam para fazer apresentações durante os cultos e também os convidavam para se apresentar em outras igrejas da região, que ficavam no entorno de Barra do Bugres.

“Na verdade, quem deu espaço para a gente foi o pastor Davi nos cultos. Não foi nas festas do dia 19 [Dia do Índio], foi nos cultos. A primeira das nossas apresentações foi em um culto e a gente entrou com as danças e foi novidade para todo mundo. Nosso objetivo era conhecer as músicas e entrar com um canto. No começo foi ‘bem’ precário, a gente pegava cantos de outros povos para adaptar no nosso, dos Guarani, por exemplo. Mas o pastor incentivava muito o grupo e foi uma das pessoas que levou a gente para Denise, Tangará, para mostrar aos membros da igreja o nosso trabalho. Com o tempo, o grupo foi crescendo e convites e outras oportunidades foram aparecendo”, disse Luciano.

 

Grupo compartilha sua história pelo país

A primeira viagem do grupo foi para Cáceres, em Mato Grosso, no ano de 2000. Os jovens foram a convite de Carlos Eduardo Avalone, que na época era presidente da Federação Mato-grossense de Tiro com Arco (FMTA), para participar de atividades que aconteciam paralelas ao Festival de Pesca na cidade. Nessa época, o grupo ainda não fazia a apresentação teatral, mas já cantava e dançava as músicas de seus ancestrais.

“Lá nós já começamos a nos manifestar culturalmente, ‘bem forte’, e isso foi nos estimulando, porque nós conhecemos parentes, indígenas que também foram, como os Gavião, Zoro e Xavante, que falavam no idioma tradicional, dançavam, se pintavam e isso estimulava bastante a gente a querer aprender mais sobre nós mesmos”, afirma Luciano.

 

Roteiro inspirado na luta do povo

Eles não lembram em que momento conheceram a Dra. Naine Terena, indígena Terena, que vive em Cuiabá, mas relatam que ela foi a responsável pela inserção das encenações às apresentações do grupo. Primeiro, eles compartilharam com ela todo o material bibliográfico que conseguiram ter acesso sobre o povo Umutina-Balatiponé.

Depois de ler todo o material, Naine os auxiliou na construção do roteiro e também com um curso preparatório para o grupo. Para fazer o curso, foi necessário que parte do grupo fosse para Cuiabá. Como o grupo era grande, apenas os personagens principais foram. Sendo eles: Luciel Boroponepá, Luciano Ariabo Quezo e Vanilson.

Nesse período, os jovens ficaram alojados na residência de Naine Terena, que também disponibilizou sua casa para a realização das oficinas, que foram ministradas por dois amigos da jovem.

“O roteiro era o seguinte, começava com a música do Valdemilsson Calomezoré, composição própria dele, sobre a história do povo, depois tinha um trecho de relato, como se fosse o povo falando, essa parte do texto era feito por mim, Luciel e Vanilson”, lembra Luciano.

Com o roteiro pronto, os jovens continuaram as viagens, mas agora além de apresentar as músicas e os cantos, também encenavam a história do seu povo, que ao final questionavam os espectadores sobre quem eles eram. Algo que sempre foram interrogados, na tentativa de deslegitimar quem eles eram.

“Determinados, esses bravos desciam o rio nus com o corpo enegrecido de jenipapo, com coro de onça adornado nas costas, arcos e com o pé direito batendo firme no chão. Gritos, medo, redimidos, redentores, amedrontados, bravos, irredutíveis, Umutina-Balatiponé, doença, coqueluche e morte. Amajunepá, Boroponepá, Ariabó, Uaquixinepá, Uapodonepá, Kupodonepá, famílias Umutina não fazem mais a saudação agressiva, não fazem mais a festa do milho, herdeiros de tudo e talvez do nada. Balatiponé, mistikamé, mistikamé. E você quem é?”, recorda Luciano sobre a sua fala. Este texto foi escrito pelo indigenista Antonio João de Jesus, pai de Naine e que viveu por longo tempo junto aos Umutina, em Barra do Bugres.

 

Desafio de encenar sua própria história

Para os jovens foi desafiador subir aos palcos. Além disso, encenar a própria história do seu povo exigia dedicação redobrada, mas dia a dia eles incorporaram às encenações toda a revolta e a indignação diante de tudo o que o seu povo havia passado.

“Lembrando agora, acho que não atuei muito bem, eu não incorporei o espírito de ator, foi mais naturalista. Eu inseria muita revolta, a gente falando e imaginando o que o nosso povo foi submetido, então na hora de apresentar eu não conseguia ser suave, eu não conseguia ser ator, eu expressava muita revolta. Mas quem assistia achava muito bom e muito forte na expressão”, recorda Luciano.

Mas a atuação, considerada por Luciano como naturalista, acabou sendo um dos diferenciais, pois o público conseguia sentir todos os sentimentos e angústias vivenciadas pelo povo Umutina-Balatiponé. “Acho que foi diferenciado nesse sentido. Eu sentia a mesma coisa dos outros. Assim, quando incorporava o espírito mesmo da oratória, aí expressava essas revoltas, no tom da fala, no olhar. Então, era muito sério”.

Segundo Luciano, os jovens também lembram que existia muito o estereótipo do público de como seriam os indígenas, de que não falariam em português, que não tinham envolvimento com a sociedade. “Tinha essa curiosidade e a forma que a gente apresentava no final superava a expectativa dessas pessoas”.

 

Tão jovens, mas com grande legado

O grupo fez apresentações até 2008, mas o seu legado permanece até hoje. Eles gravaram um DVD e um CD, que foi lançado em Brasília, no Memorial dos Povos Indígenas, mas destacam que o principal feito da Nação Nativa foi terem contribuído para a revitalização da cultura do povo Umutina-Balatiponé.

“A gente fazia o artesanato olhando e imaginando como que poderia ser”, lembra Luciano, que hoje comemora tudo o que conquistaram, sendo um conhecimento compartilhado por todos em sua comunidade, onde as crianças já crescem aprendendo as danças e os cantos por meio de seus pais ou em atividades na Escola Julá Paré, que recebeu esse nome em homenagem ao ancião, que também foi fundamental para revitalização dos conhecimentos ancestrais.

 

O texto foi escrito a partir de relatos dos guerreiros Umutina-Balatiponé: Luciel Boroponepá, Luciano Ariabo Quezo, Márcio Corezomaé e Valdomiro Ariabo Kalomezoré.