Apresentação: Al-Hissan, o Cavalo de Jenin (desorientalismos)
Al-Hissan: o cavalo de jenin
Este texto é parte de um projeto editorial construído em uma parceria entre o coletivo desorientalismos, a Editora n-1 e o Núcleo Psicanálise e Laço Social no Contemporâneo (Psilacs) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Uma seleção de textos que aborda a Questão Palestina em um diálogo com a Psicanálise e outras áreas do conhecimento, como a História, Filosofia, Sociologia e Saúde Mental. A cada quinze dias, um novo texto será lançado.
É possível especialmente agora
Montar um cavalo
Dentro de uma cela de prisão
E fugir…
É possível que as paredes da prisão
Desapareçam,
Que a cela se torne uma terra distante
Sem fronteiras:
O que você fez com as paredes?
Eu as devolvi às pedras.
E o que você fez com o teto?
Eu o transformei em uma sela.
E sua corrente?
Eu a transformei em um lápis.
Trecho do poema “A Cela da Prisão”, de Mahmoud Darwish (1941–2008).
(Tradução livre do inglês).
A Palestina está situada em um impasse. Daí partimos — da inadequação e do inoportuno que sobrevém e resiste apesar de cada novo escombro naquela terra. A interrogação central consiste em pensar sobre o que a Palestina esconde e revela a uma só vez. Figura do contemporâneo, queremos pensar o que ela hoje faz ver e falar e também o que a impede e a silencia. Aqui, trata-se então de sua função como um analisador, aquilo que guia a construção analítica, apesar do analista, apontando justamente aquilo que se quer eliminar — aquilo que não vai nos deixar safar em demasia da verdade sobre a situação, como diz Félix Guattari. Tomamos a figura das ruínas, suas pedras e seus restos também para pensar sobre a vida e a criação diante da catástrofe.
Em 29 de outubro de 2024, o exército israelense atacou a cidade de Jenin com a declaração oficial de que procurava perigosos rebeldes palestinos. Entre as muitas destruições, um dos alvos foi Al-Hissan de Jenin (Cavalo de Jenin). Al-Hissan está na entrada de um dos campos de refugiados mais antigos da Palestina. Vinte e dois anos antes, isto é, em março de 2002, a convite do escritor palestino Mahmud Darwish, uma delegação de escritores visitou a Palestina. Entre eles, estava José Saramago. Em meio ao que ficou conhecido como o massacre de Jenin, ou a batalha de Jenin, nesse mesmo ano, Saramago declarou:
Tudo o que eu pensava que sabia sobre a situação na Palestina foi destruído. Informação e imagens são uma coisa, a realidade é outra. É preciso tocar todos os sinos do mundo para dizer que o que está ocorrendo na Palestina é um crime que podemos impedir. Aqui não tem forno a gás, mas matar não é só por forno a gás. Há coisas que foram feitas do lado israelense que são semelhantes às ações de Auschwitz nazista. Essas são coisas imperdoáveis às quais o povo palestino está exposto.
Pouco depois dessa visita, entre os dias 3 e 11 de abril de 2002, o campo de refugiados de Jenin, na Cisjordânia, foi invadido pelo exército israelense em uma das incursões mais brutais até então. Cerca de 200 pessoas foram mortas e mais de 80% das casas ficaram inabitáveis. Após a incursão sionista, o cenário era de destruição, escombros e cadáveres. No ano seguinte, o artista plástico alemão Thomas Kilpper junto a um grupo de crianças palestinas moradoras do campo de refugiados de Jenin e testemunhas do ocorrido, juntaram restos das latarias das ambulâncias destruídas durante o massacre e construíram uma escultura: o cavalo de Jenin, al-hissam, o cavalo, em árabe.
Com cerca de cinco metros de altura, a escultura foi instalada na entrada do campo de refugiados. Retalhos dos restos de ambulância ou mesmo mosaico dos escombros, em um dos pedaços era possível ver a insígnia do Crescente Vermelho (rede internacional de ajuda humanitária), parte de uma ambulância na qual um médico palestino foi assassinado depois de ser atingido pelo exército israelense. Rana Barakat (2024) nos lembra que Al-Hissan é um símbolo de uma batalha da história recente e que não terminou de fato. Para a autora, a destruição da escultura revela a relação direta com seu alvo: equipes médicas em toda a Palestina, alvos específicos durante os ataques de Jenin, assim como ambulâncias que foram impedidas de transportar os feridos em dezembro de 2023. Apagamento material e simbólico da presença do povo palestino, assim como o encobrimento dos crimes do exército israelense, em suma, uma estratégia de eliminação colonial. Por que destruir um símbolo da reconstrução? Para Barakat, trata-se da tentativa de destruir um símbolo de sobrevivência, mas ao arrastar o cavalo para um desconhecido revela-se que a destruição nunca é o fim da história na Palestina. A participação ativa das pessoas do campo, em particular das crianças com visões e sonhos artísticos, continua sendo a semente do extraordinário de Al-Hissan. A inegável violência do genocídio palestino perpetrado por Israel é conhecida e não é difícil encontrar imagens do cavalo destruído e sendo arrastado por Jenin. Esculpir a libertação é como a psiquiatra e psicoterapeuta palestina Samah Jabr se refere à história do Cavalo de Jenin e também a uma outra figura histórica, a da escultura do Marco Cavallo. Em seu livro Sumud em tempos de genocidio, Jabr articula as duas imagens.
Em Trieste, na Itália, quando Franco Basaglia e muitos outros tornaram digno e visível o que estava escondido dentro dos muros do manicômio, um cavalo foi salvo e virou símbolo da abertura das portas do hospital. O velho animal fazia o trabalho interno de levar as roupas da lavanderia e seria sacrificado. Obviamente, o destino do cavalo se tornou importante para as pessoas que moravam há tantos anos ali e foi assunto em uma das inúmeras assembleias do hospital. Os pacientes queriam salvar o cavalo. Salvar o velho animal que, tomado como coisa, inoperante e inútil, seria finalmente sacrificado. A identificação com o cavalo apareceu nos desenhos de uma paciente e virou uma grande escultura produzida pelas pessoas que estavam e passavam pelo laboratório de experimentações e foi chamada Marco Cavallo. Sua força, concordando com Giuliano Scabia, trabalhador desse laboratório, não é a escultura em si — um belo animal azul de 4 metros — mas o entrelaçamento de histórias contadas ali pelas 1400 pessoas que circulavam pelo hospital. Uma característica fundamental foi assegurada para isso: a abertura. Não se sabia exatamente o que seria a escultura, apenas que ela seria grande. Não se sabia do que seria feita, qual seria sua cor e tampouco se sabia que seria um cavalo, até aparecer o desenho de uma das pacientes. A experiência de um laboratório de experimentação artístico aberto em meio a um hospital que abria suas portas e o espaço de fala e de existência de pessoas antes esquecidas. Isto é, a abertura enquanto exercício do risco daquilo que não se sabe para que a repetição seja a possibilidade de existir para além da destruição. O Aberto de Rainer Maria Rilke, diz Scabia, é o aberto tão fundo do rosto da fera que tanto fugimos. O cavalo — poupado da morte pelos internos de um hospital psiquiátrico — na segunda volta da história, se vê ainda mais rico de significados pelo entrelaçamento das tantas histórias ali coladas, histórias de cercos psiquiátricos e de cercos psicóticos que agora se abriam para o mundo. Marco Cavallo saiu às ruas em cortejo, removendo portas que impediam sua saída e transformou-se em um dos símbolos de uma experiência de crítica teórico-prática radical de liberdade: um símbolo da abertura como a possibilidade de ver também o avesso.
Não seriam os marginalizados, os racializados e impróprios do mundo aqueles que apontam as pistas para alguma espécie de saída da concentricidade encerrada em si mesma, de uma ordem vigente que exclui para se constituir? Se tivermos a coragem da abertura e a disposição ao risco, sim. Propomos aqui essa bricolagem de textos como abertura para uma visão multifacetada e ainda sem forma sobre a questão palestina em nosso campo, questão que mesmo não sendo única é paradigmática. A teoria, aqui engajada no tempo e no espaço, forjada pela sucata dos escombros daquilo que sobra. O pensamento materializado no pertencimento (e não dominação) de um território e na ética de de uma posição analítica atenta às mudanças.
O que nos interessa é o questionamento da moldura ocidental no campo da saúde mental, da psicanálise e dos estudos psicossociais. O coletivo desorientalismos propõe a circulação de novos fluxos que possam compor a produção de textos que emergem de países colonizados, e pensando a interlocução especialmente entre os países e povos do sudoeste asiático e do continente africano. Por fim, dizemos: a Palestina é aqui! Para fazermos uma volta necessária nesse tempo e nos reposicionarmos eticamente é incontornável escutar o sofrimento infligido aos territórios colonizados. Porque esses lugares tão diferentes e distantes são também muito semelhantes que é preciso reconhecer que as estratégias de aniquilamento psíquico e físico, como a tortura — seja em Gaza ou na Maré, são estratégias de colonização e racialização cotidiana e que assombram de maneira comum. As estratégias para subjugação e adoecimento adotadas pelos Estados são semelhantes nos distintos territórios colonizados e essas estruturas e ferramentas são compartilhadas para perpetuação da dominação colonial ao redor do mundo. Romper o silêncio que é tanto cúmplice quanto cínico em torno do genocídio da Palestina, para os que escutam, é analisar os modos de resistências e tratamentos utilizados por aqueles que não se deixam integralmente dominar.
E quem somos? Em outubro de 2023, um grupo de psicanalistas reuniu-se em São Paulo em um encontro que foi chamado de: pensar a catástrofe. Uma espécie de interdição em relação à Palestina nos angustiava. Interdição de pensar, de falar, de se posicionar, de solidarizar-se com essa causa. Algo da ordem do incômodo sobretudo em espaços nos quais debates sobre racismo, colonialismo, ou a luta por memória, verdade e justiça em relação à ditadura militar na América Latina estão presentes enquanto princípios políticos e éticos de atuação. Foi com a ideia de fazer pensar coletivamente tanto o horror da violência e destruição colonial produzida por Israel na Palestina, como também a resistência de um povo lutando por sua liberdade, que começou a surgir o coletivo desorientalismos. Nesse primeiro encontro, reunimos cerca de trinta psicanalistas e dali saíram propostas de textos, manifestos e ações que pudessem dar algum contorno para um sofrimento que parecia não haver possibilidade de circulação coletiva. No entanto, foi diante da tarefa de construção da série de atividades que contaram com a presença da psiquiatra palestina Samah Jabr e da psicóloga Zaynab Hinnawi, em São Paulo, em junho de 2024, organizado por um grupo menor, que o coletivo efetivamente se constituiu. A convite da tradutora do livro Sumud em tempos de genocídio (Ed. Tabla), Rima Awada Zahra, e do Sistema Conselhos de Psicologia, recebemos a chefe da Saúde Mental do território palestino em São Paulo, depois da passagem em Belo Horizonte e Brasília. Desde então, nos organizamos em torno de temas que provocam deslocamentos em ação política e epistemológica frente às orientações colonialistas. Juntas, recuperamos a perspectiva de uma prática clínica e uma produção teórica vinculada diretamente à materialidade do tempo e do espaço. Se há algo da psicanálise que podemos nos fiar é a ideia de que é preciso estar em presença para que se dê um testemunho. Presença aqui implica posição política e também ética que não hesita em sustentar que não haverá alteridade radical enquanto a Palestina, o Congo, o Sudão ou nossas terras indígenas não forem livres!
“Nasci no quinquagésimo aniversário da Nakba
de uma mãe que colheu azeitonas
e figos
e outros versos do Alcorão,
wateeni wazzaytoon.
Meu nome: uma bomba em um quarto branco,
uma suspeita ambulante em um aeroporto,
política sem escolhas”
Mohammed El-Kurd
(Tradução livre)
¹ Kapeliouk, Amnon. “Jenin: um crime de guerra”, Le Monde Diplomatique, 1 maio 2022. Disponível em: https://diplomatique.org.br/jenin-um-crime-de-guerra/
² Rana Barakat é professora associada do departamento de história da Universidade Birzeit e diretora do Museu BZU. “Jenin and Her Horse: The Power of Symbols”, fev. 2024. Disponível em: https://www.jadaliyya.com/Details/45774.
O coletivo desorientalismos é formado pelas psicanalistas Ana Gebrim, Carolina Bertol, Dafne Melo, Jana Koosah e Priscilla Santos. Contato: [email protected]. Instagram: @desorientalismos