
iii. ANCESTRAL SIMBIOSE
Texto por Julian Brzozowski
O uso que faço da inteligência artificial não é cínico nem tecnófilo; distópico nem utópico. Sabemos que, por sequer mencionar esses significantes, quero dizer que a prática inevitavelmente mistura elementos dos quatro. Mas, enquanto experimento, os afetos transitam entre o horror e o fascínio sem aterrissar em nenhum desses pólos.
O cínico seria aquele que atropela todas as sutilezas éticas do estabelecimento das plataformas de geração de imagem, desde as formas de seu treinamento até seu custo energético. Sabe que a ascensão destes modelos não é pacífica: seus movimentos serpentinos fazem danças ao redor das noções pré-estabelecidas de alguma ordem social (estas também já questionáveis em sua manifestação), em uma disruptividade entrópica cuja potencial valoração humana e mais-que-humana ainda está a ser avaliada. O cínico diz que todo uso de tecnologia tem um preço: o custo de carbono somado de todas as buscas do Google de uma pesquisa de doutorado sobre a mudança climática compensa suas boas intenções ecológicas? Seria mais saudável não escrever nada?
O tecnófilo seria aquele que se deixa encantar pela caixa preta dos trinkets e gadgets e a potência do infinito jogo que eles contêm, equivalendo esse jogo a uma das muitas faces da Verdade. No tarot, seria a carta de número I — O Mago, arcano que inspira toda a energia infantil do início de um percurso, o encantamento pela novidade, pelo espelho brilhoso onde é possível montar, desmontar e remontar fantasmas.
O distopista enxerga um rastro de destruição incendiária, controle policial e dominação psíquica como os abalos sísmicos do advento da inteligência artificial. Aqui, ela representa uma materialização do Mal enquanto mais um passo no projeto de escravização da humanidade perante senhores algorítmicos, que em sua fusão capital-fascista (isto é, no matrimônio da mercadoria com o policialismo militarizado) ameaça a própria forma de vida das dissidências de gênero, raça e crença ao forçar uma hegemonia do pensamento.
O utopista assiste à infiltração de Dionísio no seio de Apolo, embriagando o discurso hegemônico com fantasias oníricas. A inteligência artificial seria a própria libertação do sonho, que outrora custava horas de estúdio, rolos de filmes e uma infinidade de negociações e anúncios publicitários para que pudesse circular pelo imaginário comum. Essa, sim, seria a mais profunda fusão capital-fascista de domínio onírico, da qual a ia nos salva com seus custos proporcionalmente muitíssimo mais acessíveis e um resultado estético considerável. O utopista diz que é necessário se apropriar desta tecnologia e não deixá-la à mercê da hegemonia.
Cada um desses olhares alterna sua posição de foco em minha prática. Considero-a um experimento, que pode frutificar ou fracassar — que é outra maneira de dizer que ela frutifica e fracassa continuamente. Os olhares são rebatidos mutuamente, trazendo frutos ou fracassos inversamente recíprocos.
Não consigo ser cínico: não tenho uma boa desculpa para todos os atropelos éticos do advento desta tecnologia, e isso me arde. Não consigo ser tecnófilo: muitas vezes a ia me dá dores de cabeça e preciso me refugiar na escrita, na música ou na pintura, que parecem me aterrar de um lugar desconfortável. Não consigo ser distopista: vejo coisas maravilhosas nessa tecnologia… mas não consigo ser utopista: vejo horrores e distorções perigosas da realidade em seu cerne.
No presente momento, creio que a ia de geração de imagens seja um exponencializador de sonhos. Embora ela esteja inclinada a uma inércia estética, ela é uma tecnologia absolutamente manobrável, manipulável. Basta afinar os comandos, com paciência e reciprocidade quanto às entregas da máquina, e resultados admiravelmente oníricos se tornam possíveis.
Um uso fica, portanto, disponível: a tecnologia se faz um auxiliar da materialização de imagens. Vem a questão: que imagens gerar? O que vale a pena ver?
Se pensarmos em termos energéticos, há uma abundância de gerações sem nenhum sentido de ser, réplicas diretas das marcas de dominação estéticas, memes, arte extremamente kitsch. Toda essa geração está acontecendo independente de nossas críticas: a fábrica segue a todo vapor.
Não seria interessante se apropriar de tal tecnologia onírica e usar de sua potência para materializar e veicular sonhos um pouco mais ricos do que os propostos pela Marvelização do circuito comum de imagens? Fazer circular imagens prenhes de sentido, inoculadas por afetos?
Eis o desafio: é possível fazer isso com geradores de imagem de ia? Minha resposta é que tal investida se encontra nos princípios de curadoria e montagem das imagens geradas. Dificilmente algo intrinsecamente interessante será gerado, mas quando montado e confrontado com outras imagens e signos, tudo muda e sua potência fantasmagórica se revela. Vim catalogando esses experimentos de montagem na forma dos Agenciamentos Maquínicos.
Os Agenciamentos exploram o que a máquina consegue sonhar quando estimulada pelo pensamento contra-hegemônico, dentro do recorte de foco no catálogo de obras da editora n-1. A última edição lida com xamanismo ameríndio na perspectiva da Floresta de Cristal de Viveiros de Castro, o que deixa tudo à flor da pele: é possível falar sobre tais assuntos através dessa reprodução estética? Ou ainda: podemos encostar em tal tecnologia sem sujar-nos de sangue?
Infelizmente, o que se vive em nosso continente é também uma guerra arquívica: Davi Kopenawa compreende isso bem, e o expressa produzindo A Queda do Céu e A Última Floresta. Os arquivos e seus fluxos rizomáticos de informação encontram-se em disputa e não participar desta guerra é, a meu ver, aí sim uma opção cínica.
É necessário escrever, é necessário falar, é necessário circular. É necessário produzir imagens, é necessário montar imagens, desmontar, remontar e veicular imagens justamente para estimular o sonho, estimular as fábulas de simbiose, colorir o acinzentamento do parasitismo estético unilateral. Há um custo: sempre há um custo.
Mas há muito a que sonhar.