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E se o esgoto falar? (Ana Gebrim)

O muro do apartheid e uma tubulação de dejetos para um vilarejo palestino/Crédito: Ana Gebrim, arquivo pessoal.

 

Este texto é parte de um projeto editorial construído em uma parceria entre o coletivo desorientalismos, a n-1 edições e o Núcleo Psicanálise e Laço Social no Contemporâneo (Psilacs) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Uma seleção de textos que aborda a Questão Palestina em um diálogo com a Psicanálise e outras áreas do conhecimento, como a História, Filosofia, Sociologia e Saúde Mental. A cada quinze dias, um novo texto será lançado.


 

Em 31 de agosto de 2025, a IASG, (International Association of Genocide Scholars) reconheceu que Israel está cometendo genocídio em Gaza. Trata-se da maior organização de estudos sobre genocídio e que conta com diversos especialistas, inclusive sobre o holocausto. Mas há um fato curioso, de seus 500 membros, 72% ficaram em silêncio e dos 28% que votaram, 86% apoiaram a resolução. O que dizer dessa maioria silenciosa?

Enquanto um genocídio acontece, ao mesmo tempo, também se passa algo muito particular com a palavra. O mundo vira de ponta para baixo e as palavras são retorcidas, viradas do avesso, murchas, solapadas e transfiguradas. Se tornam irreconhecíveis. Um genocídio acontece e a palavra fica tão desgraçada que a preocupação em magoar um amigo é mais forte do que o ímpeto em denunciar um crime. Quando um genocídio acontece, compromissos obsequiosos ou também afetivos desvelam a crise ética instalada. “Um dia todo mundo terá sido contra isso” é o título do livro recente de Omar El Akkad, ainda não publicado no Brasil.  

No canto IX da Odisseia, podemos acompanhar a chegada de Ulisses à terra dos Ciclopes, uma terra sem leis e nem instituições comuns. Ali, ele e seus companheiros se tornam prisioneiros em uma caverna. Enquanto o Ciclope se refestela de carne humana, Ulisses lhe oferece vinho e, no diálogo entre os dois, Ulisses diz que seu nome é Ninguém. Em algum momento, o Ciclope cai de bêbado, Ulisses acerta uma estaca em seu olho e o cega. Quando o ciclope acorda uivando de dor, pede ajuda gritando: Ninguém me feriu. O que faz todos voltarem a dormir tranquilizados e Ulisses e seus camaradas fugirem escondidos debaixo das ovelhas.

Quando as forças de ocupação israelenses bombardeiam um hospital e matam dezenas ou mesmo centenas de pessoas, também milhares, ou quando bombardeiam uma vez e depois mais uma vez, matando então o resgate, os sobreviventes e a imprensa que retratava o crime, quando incendeiam tendas de refugiados e matam famílias inteiras carbonizadas, quando prédios ou bairros completos são reduzidos a ruínas em poucos segundos, quando snipers alvejam as pernas ou a cabeça de alguém, quando proíbem a entrada de ajuda humanitária e criminalizam a UNRWA, e com isso produzem fome extrema na faixa de Gaza, a Hasbara (palavra que quer dizer explicação em hebraico, basicamente as relações públicas israelense) imediatamente diz: matamos um integrante do Hamas ou havia um núcleo de terroristas naquele local. Todo mundo já ouviu a história dos infinitos túneis da resistência embaixo de hospitais, escolas, campos de refugiados. Todo mundo já ouviu a história de que o Hamas utiliza sua população como escudo humano. Não existe explicação mais convincente, certo? Ninguém estava ali. Ninguém morreu. Vocês também já ouviram a ideia de que a história começou em sete de outubro de 2023? Como uma espécie de marco zero, um evento amnésico e animalesco prova da irracionalidade islâmica ou árabe? Vocês devem conhecer igualmente o argumento sobre os civis. Ou sobre as mulheres e crianças. Geralmente isso não acontece para as populações com a dignidade de serem contadas integralmente. Os homens palestinos são potenciais terroristas. Por isso, pacifistas costumam denunciar a morte de civis. Pareceria plausível se estivéssemos falando de um conflito, ou de dois países em guerra, ou mesmo de uma guerra religiosa, ou de dois exércitos travando uma batalha em meio a suas populações civis. Mas não é isso.

Os palestinos costumam dizer que toda acusação sionista opera como uma confissão. Em psicanálise, conhecemos essa operação. O poeta palestino Mohamed El-Kurd, em seu último livro, propõe a seguinte reflexão sobre a propaganda israelense de que organizações palestinas usariam a população como escudo humano, em inglês ele diz: and what if? E se? E se fosse verdade tudo isso que as relações públicas israelenses dizem? E se o Hamas tivesse mesmo seus esconderijos no interior dos hospitais e das escolas? E se fosse verdade que toda a cidade de Gaza guarda incontáveis labirintos subterrâneos embaixo dos prédios? Isso justificaria a limpeza étnica? Justificaria bombardear hospitais? Todas as universidades, bibliotecas e escolas? Normalizamos a pena de morte e a punição coletiva? Isso justificaria o plano atual apresentado por Trump de construção da Riviera do Oriente Médio em Gaza e a anexação total do West Bank proposta nos últimos dias pelo ministro das finanças israelense?

Gaza desde março de 2025 teve a ajuda humanitária bloqueada. Israel e Estados Unidos gerem hoje a Gaza Humanitarian Foundation (GHF), uma verdadeira organização criminosa — que marca o fim de uma era humanitária (mas isso é assunto para outra fala). GHF hoje mata palestinos famélicos como num jogo de joystick caçando zumbis, mistura oxicodona em meio à farinha e oprime toda uma população por escassez. Digo limpeza étnica para ver se isso pode ter algum efeito de verdade. São milhares de famílias que desapareceram em todas suas gerações de Gaza. São 700 dias de genocídio e esse é o primeiro evento de psicanálise em São Paulo sobre a Palestina.

Nunca mais para ninguém ou nunca mais para todos, me peguei pensando. Eu poderia passar as próximas horas ou dias só enumerando a quantidade de ataques israelenses genocidas. Depois da destruição, acusam terem alvejado terroristas, isto é, Ninguém, todos voltam a dormir e Israel segue impune. Essa história tem 77 anos. O exército mais moral do mundo, as forças de defesa de Israel. O único exército que telefona para os apartamentos de um prédio e diz: “você tem cinco minutos para evacuar, esse local será explodido” e depois, em três destrói tudo, ou então alveja os que fogem por drones em uma emboscada a poucos metros dali. Israel não ataca, se defende.

Todo mundo aqui já deve ter ouvido frases como: “eu defendo integralmente o direito de autodefesa de Israel”. Quantos intelectuais repetiram essa frase, vocês se lembram? Eu não consigo esquecer. Ou: “Israel tem o direito de autodefesa”. Em que mundo o colonizador tem direito de defesa contra o colonizado? Vocês sabem me dizer? Porque de acordo com o direito internacional, o ocupante tem a obrigação de proteção e não de extermínio da população ocupada. Mas Israel não é somente um ocupante, é também um Estado colonial de apartheid. E quantas vezes ouvimos, antes de poder abrir a boca: “Do you condemn Hamas?”. Ou mesmo “Você não reconhece o direito de Israel existir?” Como se fosse preciso alguma credencial de segurança para poder então dizer algo. Como se os potenciais genocidas fossem os palestinos, os mesmos que estão sofrendo o genocídio. Afinal, Israel não ataca, se defende. 

Então, eu pergunto aqui, vocês conseguem ouvir o quão racistas são essas frases? Nunca mais para ninguém ou nunca mais para todos, me peguei pensando de novo. Uma terra sem povo para um povo sem terra foi uma das frases mais citadas na literatura sionista desde o século XIX. A Palestina como um deserto a ser povoado, uma crença que justificava a legitimidade do direito de autodeterminação de um povo, ele próprio, o povo judeu, vítima de extermínio. Mas no meio do caminho tinha uma pedra.

O que fazer diante da tirania das vítimas? Quando uma vítima reivindica seu direito de reconhecimento e autodeterminação sobre outro povo? Governos israelenses de esquerda ou de direita, historicamente justificam seu expansionismo colonial como defesa à ameaça iminente de destruição e extermínio de si, no entanto, são eles a realizarem limpeza étnica com o povo palestino (povo esse que nunca cometeu os crimes do nazismo). Golda Meir (nascida Golda Mabovitch em Kiev, na Ucrânia) foi a primeira e única mulher a ocupar o cargo de primeira-ministra israelense, entre os anos de 1969 e 1974 e ficou conhecida por sua frase there was no such thing as Palestinians¹. Não é preciso voltar tanto no tempo, eu mesma já ouvi de colegas: a Palestina nunca existiu. De fato, onde estão os palestinos aqui nessa mesa de hoje ou mesmo aí na plateia, eu me pergunto.

Eu imagino que parte das pessoas aqui conheça o texto da Lélia Gonzalez de 1983 sobre Racismo e Sexismo na cultura brasileira em que ela diz: “o lixo vai falar, e numa boa”. Essa imagem atrás de mim eu mesma tirei há poucas semanas quando estive na Palestina, em West Bank, (a Cisjordânia, essa outra Palestina, que não é Gaza, como diz a jornalista Leila Salim). O muro que vemos aqui separa precisamente uma colônia judaica instalada no alto da colina, do vilarejo palestino, logo abaixo, de onde saquei a foto. Aqui podemos ter uma primeira ideia do topos da colonização. Todas as colônias em West Bank se instalam no alto das montanhas e em regiões de nascentes de água, com isso detém (ou roubam) terra mais fértil, consumo irrestrito de água e vista. Solo e horizonte. A terra um deserto a ser ocupado e o palestino ninguém. Aqui a política é declaradamente a de obter o máximo de terra com o mínimo de palestinos.

Eu só tenho dez minutos, eu gostaria de dizer uma porção de coisas. Provavelmente vou estourar ou já ultrapassei meu tempo e não vou conseguir dizer nem metade delas. O trabalho de denunciar o antissemitismo que reside no próprio projeto sionista encorajado pelo império britânico não é meu e nem o de provar que o sionismo é um regime supremacista cuja limpeza étnica e transferência de palestinos está presente desde sua origem. A nova historiografia israelense e uma vasta literatura sobre o tema estão à disposição. O trabalho de dizer que cada vez que acusam a resistência de terrorismo se está sendo racista, não é meu. Nem o trabalho de provar que quando a solidariedade a uma causa é criminalizada, um processo profundo de discriminação está em curso. Não é minha tarefa vir aqui para dizer exaustivamente o que todos vocês podem saber se procurarem saber e que todos podem ver se quiserem ver. Também não acho que eu precise repetir mais uma vez que só encontrar legitimidade para defender a Palestina através de vozes judaicas antissionistas ou críticas ao regime israelense é igualmente racismo.

A carta que deu ensejo a esse evento surge da indignação com outra carta também de psicanalistas, mas uma carta abertamente genocida e racista. Os que tiveram a infelicidade de ler essa primeira carta assinada por membros da IPA de vários países devem ter compartilhado o mesmo choque que tive. A iniciativa dos analistas desta casa em responder tamanho absurdo é admirável. Mas pela falta de tempo, eu preciso pontuar somente uma frase do texto dessa carta de iniciativa dos analistas do Sedes. Quando a carta diz: “Nada justifica arrancar famílias palestinas de seu lugar de origem, expulsando-as da faixa de Gaza”, há uma imprecisão histórica fundamental e não posso deixar passar isso batido aqui.

Famílias palestinas são arrancadas de seu lugar de origem há mais de 77 anos. A faixa de Gaza, que antes do genocídio atual contava com uma população de 2,5 milhões, é resultado da concentração de pessoas na porção de terra com maior densidade populacional do mundo. 70% da população de Gaza já era de refugiados de outros locais, isto é, dos territórios de 48, de dentro dos territórios de Israel. É importante dizer isso: para 70% Gaza já era terra de refúgio, e não local de origem. E agora, essas mesmas pessoas foram brutalmente expulsas e arrancadas novamente. A história de violações não começa nem em 7 de outubro de 2023 e nem em 1967, nem em 2007.  

Quero aproveitar os minutos que me restam para dizer por que penso que defender uma Palestina livre hoje é uma pauta absolutamente central de todo o Sul Global e para todos os povos e para a psicanálise. E vou tentar concluir com isso. “A destruição da Palestina é a destruição do mundo” é o título do livro do Andreas Malm. Em 2000, a British Gás descobriu na costa de Gaza uma reserva natural de Gás referente à 4 bilhões de dólares, o que poderia salvar completamente a economia de Gaza à época — que, sete anos depois disso, passa a viver sob intenso bloqueio aéreo, marítimo e terrestre, onde calorias eram contadas para entrar, nos 16 anos que precederam o 7/10 — mas conhecemos bem a história no imperialismo sobre a descoberta de petróleo e recursos naturais. O golpe de Dilma Rousseff no Brasil, a desestabilização da Venezuela, a Amazônia, a invasão do Iraque. A criação do Estado de Israel coincide precisamente com a mudança global da economia do carvão para o petróleo. Israel é um ponto preciso na estratégia imperial que tem a ver com tomar o máximo de terra (com seus recursos naturais) e o mínimo de pessoas indígenas.

Nesse sentido, podemos pensar que Israel é tanto um Estado anacrônico — por desenvolver a colonização por assentamento na Palestina quando boa parte do mundo vivia processos de descolonização — como um Estado distópico — porque o que acontece ali tende a se alastrar e se reproduzir para todas as periferias do Sul Global. O mundo hoje passa tanto por uma israelização (em seus modos coloniais de dominação por apartheid e eliminação através do fanatismo religioso) como uma gazificação (limpeza étnica e destruição em massa através da acusação de terrorismo para roubo de território e recursos naturais com o objetivo de construção de Rivieras para super ricos a partir exploração de miseráveis).

Por fim, uma última pergunta: por que estou num evento de psicanálise falando de Petróleo e dos combustíveis fósseis? Concordo com os que dizem que falar sobre Israel e Palestina é um tema complexo. De fato, aqui em poucos minutos tentei agarrar alguns dos fios emaranhados em uma teia bastante complexa de interesses e disputas em jogo. Se a complexidade parece fazer grande parte das pessoas se calarem ou se isentarem, quero insistir como a noção do Complexo, essa palavra, a qual é tão cara para a psicanálise. É pelo complexo que nos aproximamos, que podemos chegar perto, tratar, pegar com as mãos, e não nos calar, distanciar ou deixar de ver. A psicanálise, como qualquer outro campo de saber, opera na lógica imperial e por isso, todos temos a ver com isso. Porque a destruição da Palestina é a destruição de todos os povos subalternizados no imperialismo.


 

¹Não existia tal coisa como palestinos”. Frase de Golda Meir, primeira-ministra de Israel entre 1969 e 1974, em entrevista ao The Sunday Times.

 

Este texto baseou a intervenção no evento: “Nunca mais para ninguém: horror e urgência na Palestina” do Instituto Sedes Sapientiae, realizado em 5 de setembro de 2025. É possível assistir à gravação integral do evento em: https://www.youtube.com/watch?v=t3hWNBt4_gU&t=3278s 

Ana Gebrim é psicanalista. Autora do livro: Psicanálise no Front: a posição do analista e as marcas do trauma na clínica com migrantes, Ed. Juruá. Pesquisadora do Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política (Psopol) da USP. Professora do Curso de Pós-Graduação da PUC Minas de Psicologia e Migração. Integra o coletivo desorientalismos.