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Se estas palavras chegaram até vocês… (Guideon Levy)

“Se estas palavras chegaram até vocês, saibam que Israel conseguiu me matar e silenciar minha voz”, escreveu em seu testamento o jornalista Anss Al-Sharif. “Deus sabe que dediquei todo esforço e força que estavam ao meu alcance para ser um apoio e uma voz para o meu povo, desde que abri os olhos para a vida nos becos do campo de refugiados de Jabalia. Minha esperança era que Deus prolongasse minha vida até que eu pudesse retornar com minha família e entes queridos para nossa cidade original, Ascalão, para Al-Majdal. Mas a vontade de Deus foi mais rápida — e Sua palavra foi decretada”.

Não foi a vontade de Deus que decidiu o destino de Al-Sharif esta semana, nem o de outros quatro membros da equipe na tenda de imprensa anexa ao hospital Shifa, em Gaza. Não foi a vontade de Deus, mas um drone criminoso do exército israelense (IDF), direcionado para matar Al-Sharif, o correspondente mais destacado da Al Jazeera nesta guerra.

Não foi a vontade de Deus, mas a vontade de Israel de executá-lo sob a alegação de que ele era “líder de célula” do Hamas, sem apresentar um fragmento de prova. O mundo acreditou na versão do exército, assim como acreditou no passado que não foi o IDF quem matou a jornalista Shireen Abu Akleh em Jenin. Mesmo quem quer acreditar que Al-Sharif era um líder de célula deve perguntar: e os outros mortos? Eram vice-líderes? Um exército que mata jornalistas em massa, de forma tão sanguinária, e um país que não permite cobertura livre da guerra, não merecem crédito em nada — nem mesmo nas histórias sobre o “líder de célula de Jabalia”.

É difícil acreditar — ou talvez já não seja — no quão pouco interesse houve aqui (em Israel) pelo assassinato de jornalistas. A imprensa israelense se dividiu em dois: os que ignoraram a história e os que contaram que Israel eliminou um terrorista. Equipados com zero informações, quase todos se alinharam para reproduzir a narrativa ditada pelo IDF, e que se dane a verdade. E não apenas a verdade, mas também a solidariedade com um colega corajoso da profissão.

A única “prova” apresentada foi uma foto de Al-Sharif com Yahya Sinwar. Sim, isso é motivo suficiente para uma execução.

Um milhão de vezes mais corajoso que qualquer jornalista israelense, e muito menos alinhado com a propaganda de seu país e povo do que qualquer Nir Dvori (jornalista do canal 12 israelense), Al-Sharif poderia ter ensinado à mídia israelense os fundamentos do jornalismo. A audácia da imprensa daqui não tem limites: Al Jazeera é uma rede de propaganda, gritam os repórteres dos canais israelenses — os mesmos que, nesta guerra, deram má fama à propaganda nacionalista engajada e ao ocultamento da verdade. Al Jazeera é propagandista? E o que dizer do Canal 12? E do 11, 13, 14 e 15? Eles têm alguma ligação com o jornalismo nesta guerra?

Com a morte do jornalismo, morre também a verdade — e com ela, a solidariedade. Aqueles que mataram mais jornalistas nesta guerra do que em qualquer outra da história — 186, segundo o Comitê para a Proteção de Jornalistas (CPJ), ou 263, segundo a ONG B’Tselem — um dia apontarão suas armas também para nós, os jornalistas israelenses que não lhes agradarem. É difícil entender como os jornalistas israelenses não percebem isso. Ou talvez pretendam continuar servindo obedientemente à máquina de propaganda israelense, porque, para eles, isso é jornalismo.

Mas esta semana, o IDF bombardeou uma tenda de imprensa, e as cenas que os israelenses não viram eram horríveis: corpos de jornalistas foram retirados da tenda em chamas, e seus colegas israelenses ou aplaudiram, ou se calaram. Que vergonha, humana e profissional. Em que isso é menos chocante do que o assassinato do jornalista saudita Jamal Khashoggi? Porque o corpo de Al-Sharif não foi esquartejado?

Os amigos de Al-Sharif e seu testamento revelam que ele sabia que era um alvo. Quando o IDF começou a ameaçar sua vida em outubro, a relatora da ONU para liberdade de imprensa, Irene Khan, disse que temia por seu destino. Al-Sharif, ela afirmou, era o último jornalista que restava no norte da Faixa. Exatamente por isso, Israel o matou. “Não se esqueçam de Gaza”, foram suas últimas palavras no testamento.


 

Guideon Levy é editor do Haaretz e um dos mais respeitados jornalistas de Israel.