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As ruínas devem ser habitadas como parte de um processo de reparação (Ariella Aïsha Azoulay)

Homem palestino toma café na varanda de sua casa após um ataque aéreo israelense atingir a Mesquita de Al-Qassam no Campo de Refugiados de Al-Nuseirat, no centro da Faixa de Gaza. Fotógrafo: Saeed Jaras Instagram: @said.m.jaras

 

Este texto é parte de um projeto editorial construído em uma parceria entre o coletivo desorientalismos, a n-1 edições e o Núcleo Psicanálise e Laço Social no Contemporâneo (Psilacs) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Uma seleção de textos que aborda a Questão Palestina em um diálogo com a Psicanálise e outras áreas do conhecimento, como a História, Filosofia, Sociologia e Saúde Mental. A cada quinze dias, um novo texto será lançado.


 

Por que reescrever um texto após tê-lo escrito e publicado há algumas semanas? Porque algo horrível está acontecendo na Palestina e está acontecendo também com todos, mais uma vez.

 

Quem somos “nós”? 

A humanidade. 

 

O horror da Nakba se repete em nossas telas, transmitido diretamente por suas vítimas, que também enviam testemunhos. Nem sabemos se sobreviveram quando as suas mensagens nos chegam, pois o genocídio continua com dinheiro e armas que os EUA e a Europa continuam enviando a Israel, para que aquilo que aconteceu em 1948 se repita. 

 

Em um desses testemunhos, um palestino chamado Nizar escreve a partir do coração desses crimes contra a humanidade que estão sendo inscritos em seus corpos: “Nos sentimos muito próximos da morte aqui em Gaza, a sentimos a cada segundo. Sentimos o cheiro da morte em todo o lado”.

 

Ainda não sei se Nizar pôde proteger seus filhos após descrever como é difícil olhar nos olhos deles: 

 

“O que você vê é somente medo e lágrimas, e você sente que não é capaz de protegê-los ou salvá-los”. 

 

Sabendo muito bem que os planos de extermínio decretados pelos nazistas e inscritos nos corpos dos judeus, dos ciganos, de pessoas queer e dos membros de outros grupos, não seriam, infelizmente, os últimos, Hannah Arendt foi a Jerusalém para assistir ao julgamento de Eichmann e nos escrever um relatório detalhado, para que nunca nos esqueçamos do princípio desses crimes contra a humanidade, que aquele tribunal não conseguiu articular em 1961.

 

Esses crimes estão inscritos nos corpos de suas vítimas. Contudo, ao mesmo tempo que esses grupos racializados são visados, está também sendo perpetrado um ataque às próprias fundações das comunidades nas quais esses crimes estão sendo perpetrados, colocando-as em perigo e prejudicando suas leis.

 

Independentemente de como essa comunidade seja definida — como uma nação, um Estado, uma aldeia, um povo — a lei em perigo é a da diversidade humana. Esvaziar a Palestina dos palestinos e criar um Estado para impedir o seu regresso foi um crime contra a humanidade. Os seus perpetradores, aqueles que o executaram, eram judeus sionistas educados na Europa sobre como se tornar agentes coloniais. 

 

Na sequência da Segunda Guerra Mundial, as potências imperiais euro-americanas deram o controle sobre a Palestina a esses sionistas, com o organismo internacional que formaram no final daquela guerra, para os ajudar a impor uma nova ordem mundial. 

 

A Palestina é de vocês, disseram eles, segundo a lei das Nações Unidas. E designaram assim os palestinos como aqueles em quem esses crimes contra a humanidade seriam inscritos.

 

Nas últimas semanas, o lugar de memória desses crimes, um dos quais foi a invenção de Gaza como uma “faixa” — um estreito pedaço de terra onde 200 mil palestinos expulsos em 1948 de outras partes da Palestina foram espremidos em oito campos de refugiados ali construídos — foi varrido da face da terra.

 

Ao mesmo tempo que as memórias desses crimes e da forma como os palestinos reconstruíram as suas vidas em Gaza foram arrasadas, novas memórias de uma Nakba estão sendo reinscritas, tatuadas nos corpos dos descendentes da Nakba de 1948 e dos seus filhos.

 

E o governo do Estado de Israel, juntamente com os governos ocidentais, querem que acreditemos que não está sendo cometido nenhum genocídio. Crimes contra a humanidade não são definidos pelo sofrimento das vítimas, por maior que seja, mas pelas ações dos perpetradores.

 

O ataque mortal de 7 de outubro contra os israelenses foi também um ato de resistência dos palestinos contra “as mil mortes” que morreram desde 1948. Isso não deve ser esquecido, mesmo que nos recusemos a justificá-lo, e deve ser repetido em voz alta quando esse ataque é usado para justificar um crime contra a humanidade, cujo objetivo é eliminar os palestinos pelo fato de serem palestinos, uma ameaça à soberania israelense, que não os quer lá, ou seja, em terras palestinas. 

 

O genocídio se desenrola em etapas que podem ser longas e desconexas, ou rápidas e complicadas: expulsão, concentração, assassinato. Essas etapas nem sempre acontecem nessa ordem, mas partilham o mesmo objetivo: eliminar um ou mais grupos, para inventar um povo ou um corpo político livre da presença desses grupos.

 

Em retrospectiva, este genocídio está em curso desde 1948 e está emaranhado com o genocídio inscrito nos corpos do povo judeu — ambos originados em tecnologias e imaginários racializantes e colonizadores euro-americanos.

 

Para isso, devemos recordar que o Estado de Israel também foi criado com o objetivo de eliminar os judeus, fazendo-os desaparecer sob novos tipos de judeus desprovidos da sua história mais longa e memórias indisciplinadas: os israelenses.

 

É necessária uma “história potencial” para contrariar a disciplina da história que considera o que foi conseguido por meio da violência como um fato consumado, sem possibilidade de retorno. 

 

A história potencial se recusa a ver a divisão da Palestina iniciada em 1947 como um fato consumado e Israel como o seu futuro inescapável; se recusa a esquecer o papel e os interesses da Europa e, mais tarde, dos EUA, na formação desse projeto colonial e na sua perpetuação, incluindo agora. 

 

Transformar a Palestina numa questão foi o início de um projeto colonial. Um lugar não pode ser transformado numa questão a menos que os empreendedores do império o ignorem como um mundo e vejam ali apenas os recursos que podem extrair.

 

Transformar um povo em uma questão é também o início de um projeto colonial assim como foi a “questão judaica”. Um povo não pode ser transformado numa questão a menos que os empreendedores do império forcem os indivíduos e as comunidades circundantes a abandonarem os seus modos de vida, à medida que começam a criar “soluções” para se livrarem deles em benefício dos seus interesses.

 

Esse tipo de violência fundacional, que transforma um lugar ou um povo em uma “questão”, é muitas vezes enterrado sob outras ondas de violência, para tornar até mesmo aqueles colonizados pela questão imperial se esquecerem de que a sua luta não é apenas contra seus perpetradores imediatos, mas também contra aqueles que os forçaram a se tornar uma questão ou uma solução.

 

Foi aqui que comecei este texto quando o escrevi pela primeira vez em setembro.

 

Quem fala sobre a questão da Palestina deve começar por dizer quem é, como é impactado por esta questão ou como foi implicado na manutenção da Palestina como uma questão imperial, para a qual, por definição, apenas soluções imperiais podem ser dadas.

 

Quem sou eu, então?

 

Bem, sou uma judia palestina hoje, uma espécie quase extinta. E eu sou uma judia argelina, uma espécie quase extinta também. 

 

Por que falar em extinção? Porque termos aparentemente inocentes como a liberdade, o povo, a nação, o Estado-nação, o direito internacional e a soberania não são apenas conceitos, são também tecnologias imperiais euro-cristãs, usadas à força para extinguir essas identidades e formas de pertença, que foram vistas como obstáculos à invenção de nações modernas, incluindo uma nação judaica moderna, baseada na fantasia de um corpo político homogêneo, que o aparelho do Estado, do Estado-nação, deve defender. 

 

Foi o que aconteceu a partir do final do século XVIII. A violência imperial foi exercida contra comunidades judaicas, diferentes entre si e espalhadas por todo o mundo, forçando-as a se reconhecerem numa entidade inventada o povo ou nações judaicas, uma entidade estranha às suas crenças, práticas e leis, que não eram centralizadas nem homogêneas. 

 

Assim nasceu o problema judaico e a sua primeira “solução” a unificação. Esses esforços de unificação foram realizados por meio da violência da assimilação e da emancipação, com o objetivo de eliminar os judeus e transformá-los em outra coisa. 

 

Esses esforços também falharam porque os judeus persistiram no imaginário europeu como um problema. Os sionistas cristãos e grupos como a Sociedade de Londres para a Promoção do Cristianismo entre os Judeus, com filiais na Palestina desde o início do século XIX, já tinham transformado a Palestina numa “questão” e mobilizado o lugar da Palestina/Sião nos corações dos judeus em direção a um projeto político no qual eles são usados ​​para cumprir um papel na concepção imperial cristã do mundo. 

 

A assimilação estava enredada com a conversão e, após a sua imposição, muitos judeus na Europa que se esperava que vivessem como pessoas seculares cristãs e que só podiam ser judeus no seu país converteram-se e lideraram essas missões na Palestina.

 

A Igreja de Cristo, fundada em Jerusalém no início da década de 1840, é um exemplo. A maioria das histórias do sionismo ignora o fato de que, desde o início do século XIX, os sionistas não-judeus da França, Inglaterra e Alemanha foram os que traçaram os primeiros planos para a colonização da Palestina por judeus, que eram indesejados na Europa, a menos que se convertessem e cumprissem essa missão.

 

Foi só mais tarde, com o aumento do racismo contra os judeus e a expansão contagiosa da nação, do Estado-nação e do nacionalismo (e das tecnologias violentas que os impõem), que o imaginário político de um mundo organizado apenas na forma de Estados-nação foi consolidado, e os judeus da Europa foram gradualmente treinados e encorajados a se transferirem para a Palestina e a adotarem este projeto europeu um projeto que visava eliminá-los como o seu projeto de libertação, um projeto que lhes permitiria finalmente recuperar a sua dignidade humana, que havia sido esmagada e ferida pela Europa. 

 

Ao longo de todo o século XX, a Europa procurou soluções territoriais, isto é, coloniais lugares para os quais os judeus pudessem ser transferidos: Uganda, Madagáscar e Theresienstadt, até que finalmente a Palestina foi “escolhida”.

 

No final da Primeira Guerra Mundial, a Palestina foi conquistada pela Europa, separada da Síria e dividida como um troféu entre os britânicos e os franceses parcialmente também como punição à Alemanha. 

 

Todos os três países europeus foram responsáveis ​​por inventar que judeus diversos eram o povo judeu, um povo com a particularidade de não ter terra. 

 

Foi assim que a solução para o “problema judaico” começou a se enredar com uma solução para a questão da Palestina.

 

Foi assim que a Palestina poderia tornar-se uma colônia, uma colônia de povoamento (settler colony) um projeto europeu terceirizado a judeus que acabaram por participar no “resolvimento” do problema que colocavam à Europa, e servindo como solução para o medo da Europa de perder a Palestina para os seus habitantes, que resistiram ao seu poder colonial, e apresentaram queixas contra ela. 

 

Foi assim que um Estado-nação judeu “semelhante a todos os outros” poderia nascer e os seus líderes seriam reconhecidos como representantes do povo judeu em todo o mundo. 

 

Foi no final da Segunda Guerra Mundial que a colonização sionista da Palestina emergiu como uma solução para ainda outro problema: a responsabilidade da Europa pelos crimes contra a humanidade inscritos nos corpos de homens e mulheres judeus. 

 

Assim, a Europa, fugindo à sua responsabilidade pelo papel que desempenhou na criação da “questão judaica” para a qual o genocídio era uma das “soluções” e pelo seu papel na criação da “questão da Palestina”, prometeu a Palestina aos sionistas (não pela primeira vez), com a condição de que a partir de agora os palestinos e, por extensão, os árabes e os muçulmanos, fossem seus inimigos, e que os sionistas liderassem a luta contra eles.

 

Desde a década de 1930, a Palestina também acolheu refugiados que fugiam da Europa, a maioria dos quais não eram sionistas. A oposição à criação de um Estado para os judeus na Palestina era enorme entre seus habitantes, bem como entre os habitantes dos países vizinhos, incluindo os judeus que sempre viveram lá, que temiam que esse Estado levasse o mundo judaico-muçulmano ao seu fim. 

 

Mas esse Estado foi, no entanto, proclamado e imediatamente reconhecido pela ONU a organização internacional criada pelas forças imperiais euro-americanas para lhes permitir preservar as suas colônias em toda a África e consolidar a “nova ordem mundial” que presidiram. Nesse Estado-nação, a nacionalização da identidade dos judeus foi levada ao extremo.

 

O que essas tecnologias produziram foi uma forma de nacionalidade que os euro-sionistas foram mais tarde obrigados a impor a crianças como eu, nascidas nas fábricas humanas que surgiram na colônia sionista na Palestina, uma identidade nacional completamente inventada: israelenses de fé judaica.

 

Deve ser claramente afirmado: essa identidade foi concebida para impedir o regresso dos palestinos e da Palestina, e para se opor às histórias ricas e diversas das comunidades judaicas, muitas das quais viviam em comunidades muçulmanas.

 

Ao reivindicar e incorporar essas identidades quase extintas: judia palestina e judia argelina, me recuso a me reconhecer-me na identidade “israelense” que foi inventada com o propósito de tornar impossível o regresso da Palestina e dos palestinos à sua terra natal, bem como o nosso regresso, como judeus, ao mundo dos nossos antepassados, onde pertencíamos a diversas comunidades.

 

Os judeus não tinham terras que a Europa pudesse colonizar; pelo contrário, possuíam uma forte identidade de grupo — o que Frantz Fanon chama de “resistência ontológica” — que preservaram e transmitiram aos seus filhos durante séculos através de princípios, práticas e formações sociais e espirituais. 

 

A Europa procurou destruir e substituir essa identidade de grupo pelas suas próprias formas, princípios, crenças e tecnologias de organização ou, para ser mais claro, procurou colonizá-la.

 

A colonização muitas vezes tem como alvo terras. Sem terras para conquistar, a Europa procedeu à colonização das mentes dos judeus, destruindo essa resistência ontológica identitária ao secularismo imperial devorador da Europa e dissolvendo a sua autonomia e princípios organizacionais internos.

 

A colonização dos judeus, primeiro na Europa e depois no chamado norte de África e Médio Oriente, visou e destruiu as suas diversas identidades, formas de pertença, práticas e crenças, submetendo-os a uma única Lei de Moisés codificada por Napoleão, que nivelou a pluralidade de leis e práticas que prezavam, e ao controle dos poderes colonizadores do Estado moderno. 

 

A Europa tinha um claro interesse em associar as “soluções” para o “problema judaico” apenas aos nazistas, de modo que as origens da “questão” nessa formação colonial da Europa iluminista, que forçou, por um lado, diversos judeus a se representarem como membros de um único povo — o povo judeu, com uma história nacional unificada — e por outro, a serem assimilados no espaço branco, cristão e secular do Estado moderno como cidadãos individualizados e, mais tarde, como judeus em conformidade com um modelo cristão Estado feito para eles e em seu nome. 

 

Sem o apoio das potências imperiais euro-americanas, o sionismo e o seu regime colonial na Palestina não teriam sobrevivido, e outra formação política que procurasse reparar as feridas e injustiças causadas pelo trágico projeto que é a colonização da Palestina, poderia ter visto a luz do dia há muito tempo.

 

Cada uma dessas soluções para a “questão judaica” e para a “questão da Palestina” inventadas e apoiadas pelas potências euro-norte-americanas e pelas tecnologias imperiais, esconde a verdadeira questão que deu origem a essas questões — a Europa e o Ocidente em geral!

 

A ideia do sionismo nasceu como uma solução europeia para o povo judeu e também serviu como uma resolução para a questão da Palestina. 

 

O sinal para destruir a Palestina foi dado pelas potências imperiais em 29 de novembro de 1947, quando a resolução para dividir a Palestina foi emitida pela ONU, contra a maioria dos palestinos que habitam a Palestina, e contra os judeus de todo o mundo que não haviam escolhido o caminho sionista.

 

No Cairo, Bagdá, Beirute e Palestina, as pessoas protestaram contra a resolução da ONU de dividir a Palestina. 

 

Nessa altura, já sabiam o suficiente sobre o colonialismo europeu para saber que aquilo a que se opunham era a violência genocida necessária para que a divisão da Palestina fosse aplicada.

 

Só a nossa percepção danificada e memórias quebradas podem nos induzir a assumir que entre essas enormes multidões também não havia muitos judeus, cujas vidas naqueles mundos judaico-muçulmanos ameaçados estavam enredadas com lutas anticoloniais. 

 

Aqui está o que Siril Shirizi, um dos fundadores da Liga Judaica Antissionista no Cairo um grupo de ativistas árabe-judeus antipartilha escreveu em 1947, que pode ser capturado entre os manifestantes no Cairo:

 

Homens Judeus! Mulheres Judias!

 

O sionismo quer nos lançar em uma aventura perigosa e sem esperança. O sionismo contribui para tornar a Palestina inabitável. O sionismo quer nos isolar do povo egípcio. O sionismo é o inimigo do povo judeu.

 

Abaixo o sionismo! Viva a irmandade entre judeus e árabes!

 

Viva o povo egípcio!

 

Essas são as últimas fotografias dos mundos destruídos pelos colonialismos europeu e sionista.

 

Os judeus já não podem ser considerados uma parte inata dos seus mundos ancestrais, e os palestinos já não podem ser considerados guardiões do seu país, já não podem agir como sujeitos políticos que se opõem a um projeto genocida imposto por uma minoria e alertam contra ele.

 

Em todas as outras fotografias tiradas nessa região, judeus e palestinos são assumidos como inimigos enquanto ocupam posições de colonizadores e colonizados, criadas para eles pela Europa e pelos EUA, cujo papel nessa história genocida deve ser reconhecido antes e para além do atual genocídio em Gaza, para que a descolonização possa ser imaginada até a herança colonial das guerras napoleônicas, ou mesmo das Cruzadas, e da expulsão de judeus e muçulmanos da Espanha.

 

Foi a partir desse momento que os sionistas (que, até a criação do Estado, vinham maioritariamente da Europa), ganharam poder sobre muitos judeus que não eram sionistas, e nos colonizaram por meio da migração provocada e forçada do mundo judaico-muçulmano no Norte de África e no Médio Oriente, doutrinando-os para se tornarem sionistas, e agindo como seus representantes, garantindo que pudessem agir fora dos termos estabelecidos pela sua violência uma violência que Walter Benjamin descreveu como constitutiva da lei, imposta como lei, e cuja preservação requer o exercício indefinido da sua violência. Violência como a que vemos agora.

 

A lei criada por essa violência estabeleceu uma guerra entre “dois lados”, “dois lados” cuja criação, claro, foi forjada em muita violência.  

 

O objetivo da violência sionista, então, é tanto solidificar como manter estes “dois lados” de tal forma que a palavra “palestino” já não se refere aos habitantes da Palestina, mas ao inimigo daqueles que se tornaram habitantes do Estado de Israel, criado na Palestina para eliminar a Palestina. 

 

É por isso que repito: sou uma judia palestina, reivindicando uma identidade que foi proibida.

 

Devemos lembrar que até à Segunda Guerra Mundial, o movimento sionista era pequeno, atraindo muito poucos judeus em todo o mundo.

 

Após a Segunda Guerra Mundial, a situação dos judeus na Europa teve de ser radicalmente transformada, enquanto as tecnologias que os racializaram e exterminaram, juntamente com muitos outros grupos, tecnologias que deveriam ter sido abolidas, foram preservadas e protegidas pelo direito internacional.

 

Os nazistas e os judeus foram excepcionalizados para limpar o nome da Europa. 

 

Em vez de abolir a Europa e as suas tecnologias racializantes, o Ocidente “presenteou” os sionistas com a criação de um Estado equipado com tecnologias imperiais, inventadas e implementadas pela Europa na América, Ásia e África. Desde então, os sionistas, juntamente com aqueles que os apoiam, falam pelos judeus e agem em seu nome.

 

* * *

 

Isso só foi possível por causa a conversão do Holocausto num exemplo de sofrimento universal incomparável, infligido por um inimigo excepcional e incomparável, de modo a dissipar as semelhanças e continuidades com as tecnologias genocidas utilizadas por outras potências europeias em suas colônias em outros locais, e pelo próprio Estado de Israel contra os palestinos. 

 

Com a criação do Estado de Israel, séculos de vida que os judeus partilharam com os muçulmanos foram destruídos, relegados ao esquecimento e tornados difíceis de imaginar.

 

A destruição desse mundo não é uma coincidência, mas um crime imperial. É o resultado da invenção dessas duas questões emaranhadas, a Questão Judaica e a Questão da Palestina, que transformou a Palestina e os palestinos em inimigos do povo judeu, e vice-versa; os judeus foram associados à força aos sionistas e ao povo judeu que os sionistas afirmavam representar. Dessa forma, independentemente da sua história ou se se opuseram ao regime colonial na Palestina — os judeus foram transformados em inimigos de palestinos, árabes e muçulmanos. 

 

Assim, uma tripla destruição foi a solução para esse par de questões: da Palestina, da diversidade das comunidades judaicas e das comunidades judaicas e muçulmanas em todo o mundo. 

 

Até hoje, essa tecnologia racializante europeia, agravada em sua variante estadunidense, é usada para preservar a divisão entre judeus e palestinos e entre judeus e árabes, como se essas fossem categorias mutuamente excludentes, e para apagar da memória a existência de um mundo judaico-muçulmano, ao mesmo tempo que alimenta a invenção de uma “tradição judaico-cristã”.

 

No rescaldo da Segunda Guerra Mundial, essa tradição inventada permitiu à Europa renascer como salvadora dos judeus.

 

Determinou quem os judeus poderiam se tornar, como poderiam falar e agir neste mundo. 

 

Os judeus foram forçados a aderir aos mandatos dessa tradição, para que não se transformassem mais uma vez num problema a ser resolvido pela Europa.

 

Se nos recusarmos a esquecer isso, não poderemos continuar a ver a Palestina como uma zona de guerra envolvendo apenas israelenses e palestinos.

 

O apoio ao Estado de Israel concedido por essas potências imperiais sob a forma de dinheiro, armas e leis que proíbem protestos e dizer a verdade revela, mais uma vez, que é do interesse dessas potências manter os israelenses no seu papel de mercenários do Ocidente contra palestinos, árabes e muçulmanos.

 

Há um aumento da dissidência entre os judeus que, após a Segunda Guerra Mundial, não tiveram outra escolha se não quisessem ir para Israel senão aderir ao mandato dessa tradição judaico-cristã, inventada para silenciá-los e forçá-los a aceitar esta nova história inventada. 

 

Essa dissidência toma forma no renascimento das nossas tradições ancestrais, na recusa de nos reconhecermos nesse poder estatal e na reparação das ruínas deste mundo, tikkun olam¹

 

A descolonização da Palestina do regime colonial não é apenas um projeto palestino, é também um projeto judaico.

 

Muitos de nós, judeus na diáspora, estamos empenhados nesse projeto na nossa busca pela libertação do sionismo — uma luta que também envolve o renascimento dos mundos judaicos ancestrais que precederam o sionismo e que perdurarão muito depois do seu desaparecimento. 

 

Opomo-nos à fusão entre israelenses e judeus, Israel e judaísmo, imposta pelo discurso sionista e apoiada por muitos Estados ocidentais que criminalizam as críticas a Israel como antissemitismo, e tentam silenciar os judeus que se recusam a apoiar o Estado de Israel. 

 

Da mesma forma que o genocídio é iminente para o regime colonial poe povoamento, a descolonização é iminente para esse regime. 

 

A descolonização poderá ser violenta se os israelenses continuarem a negar aos palestinos o direito à liberdade, à justiça e ao regresso; ou poderá ser dolorosa mas libertadora para todos se os israelenses finalmente reconhecerem que os palestinos não são seus inimigos e que podem parar de agir como mercenários do Ocidente na sua guerra contra os árabes e o Islã no Oriente Médio, e contra os palestinos a nível local.

 

A liberdade dos palestinos é também a liberdade dos judeus, e para alcançar a sua própria liberdade, os sionistas e os judeus devem se libertar desse regime colonial, que os roubou das suas histórias diversas.

 

Nós, judeus muçulmanos, judeus cujos antepassados ​​foram desenraizados deste mundo que partilhávamos com os muçulmanos, nos opomos à reorganização do mundo por meio desses projetos coloniais, que fizeram com que não pudéssemos mais viver entre os muçulmanos como os nossos antepassados ​​sempre viveram.

 

Devemos nos libertar desse terror europeu, desse terror sionista, e lutar pela descolonização — e desnacionalização — do povo judeu, a fim de se tornar, mais uma vez, um problema para a “nova ordem mundial” euro-americana, e nos juntar novamente a outros grupos racializados pela Europa, insubordinados a essa ordem racial global, se recusando a incorporar tanto os problemas como as soluções, e revivendo um mundo judaico-muçulmano partilhado contra a sua velha-nova ordem mundial racial.

 

A reconstrução do mundo judaico-muçulmano é inseparável da descolonização da Palestina, que só pode ser reparada e tornar-se um verdadeiro horizonte de descolonização se, juntos, desmantelarmos as tecnologias imperiais que permitiram a sua destruição e lutarmos pela abolição das tecnologias racializantes da Europa. 

 

A descolonização da Palestina e dos judeus são inseparáveis.

 

Os defensores da descolonização não podem aspirar a nenhuma das soluções comuns que prometem transformar a Palestina num Estado-nação “moderno”.

 

Devemos retornar ao que foi destruído, às ruínas e às possibilidades que estavam condenadas a aparecer como “passado”.

 

Devemos reconstruí-los e ressuscitá-los com e para o bem daqueles que foram colonizados e expulsos, com e para o bem dos seus descendentes.

 

As ruínas devem ser habitadas como parte de processos e formações de reparação, de uma reparação lenta que se baseia nas muitas diferentes formações de cuidado social, político e espiritual, que foram destruídas pelas tecnologias europeias de violência e pelo direito colonial e internacional imposto a todas as leis comunais pré-coloniais.

 

Essas foram formações que outrora organizaram o mundo judaico-muçulmano e ainda podem ser revividas, continuadas e reparadas.

 

Essa descolonização geminada nos obriga a regressar às pilhas de ruínas muitas das quais ainda não foram atendidas e a habitá-las, a reparar comunidades destruídas, a ressuscitar a terra, a curar feridas, a perdoar e a ser perdoado não para expiar aqueles que cometeram crimes, mas para alcançar a fé da humanidade de que na Palestina, a descolonização não será prosseguida em termos genocidas euro-americanos, que na Palestina, as leis racializantes do império que levaram a tantos crimes contra a humanidade serão abolidos. O regresso da Palestina como um lugar onde os crimes não são apagados com outros crimes.

 

O regresso da Palestina como um lugar onde convocamos e invocamos os nossos diversos antepassados ​​para nos guiarem no renascimento dos potenciais que eles testemunharam serem destruídos, com o conhecimento de que foram erroneamente considerados como (ultra)passados.


 

¹[N.T.] Tikkun Olam (em hebraico: תיקון עולם) é uma expressão do judaísmo que significa “conserto” ou “reparação do mundo”. Trata-se de um conceito ético e espiritual que expressa a responsabilidade humana de melhorar, aperfeiçoar e transformar o mundo em um lugar mais justo, equilibrado e harmonioso.

 

Este texto foi originalmente publicado em 11 de dezembro de 2023, em https://hyperallergic.com/861590/the-ruins-should-be-inhabited-as-part-of-a-process-of-repair/.

Agradecemos à autora por autorizar sua tradução e publicação.  

 

Tradução e revisão: coletivo desorientalismos 

 

Ariella Aïsha Azoulay é professora de Cultura Moderna e Mídia e do Departamento de Literatura Comparada da Brown University e curadora independente de Arquivos e Exposições. A pesquisa e os livros de Ariella Aïsha Azoulay concentram-se na história potencial de conceitos e instituições políticas fundamentais: o arquivo, a soberania, a arte e os direitos humanos. A história potencial, um conceito e uma abordagem que ela desenvolveu na última década, tem implicações de longo alcance para os campos da teoria política, das formações arquivísticas e dos estudos fotográficos. Seus livros incluem: Potential History: Unlearning Imperialism (Verso, 2019), Civil Imagination: The Political Ontology of Photography (Verso, 2012), e The Civil Contract of Photography (Zone Books, 2008).