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Intifada: Da Palestina à Caxemira (Ather Zia)

Imagem da capa: Um mural com a inscrição “We Are Palestine” (Nós somos a Palestina), criado por um artista da Caxemira.

 

Este texto é parte de um projeto editorial construído em uma parceria entre o coletivo desorientalismos, a n-1 edições e o Núcleo Psicanálise e Laço Social no Contemporâneo (Psilacs) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Uma seleção de textos que aborda a Questão Palestina em um diálogo com a Psicanálise e outras áreas do conhecimento, como a História, Filosofia, Sociologia e Saúde Mental. A cada quinze dias, um novo texto será lançado.


 

27 de fevereiro de 2025

Minha contribuição para a nossa conversa coletiva emergente contra o neocolonialismo vem da perspectiva da Caxemira. A Caxemira é frequentemente comparada à Palestina e, às vezes, referida como “outra Palestina”. Neste ensaio, destaco, revisito e expando alguns aspectos da luta caxemira por azadî (libertação) e sugiro formas pelas quais ela ressoa com a luta palestina. Meu objetivo é o mesmo dos ensaios irmãos desta série: fortalecer uma práxis feminista decolonial transnacional que sonha e vigia pela libertação coletiva de todos os modos de imperialismo europeu — uma solidariedade feminista decolonial que se evidencia em todas as expressões de humanidade — da poesia aos protestos, da análise aos argumentos. Ou seja, uma práxis feminista decolonial que transforma nossa existência em resistência.

Em um mundo que, após a Segunda Guerra Mundial, deveria estar “descolonizado”, testemunhamos o crescente poder da ordem neocolonial, evidente na brutal militarização, colonialismo de assentamento, ocupação ilegal, assassinatos étnicos, extração capitalista, ecocídio e um aumento nas violações de direitos humanos em todo o globo. Isso também é profundamente evidente nos EUA. A marcha do neocolonialismo — hoje com outros nomes — adicionou ao lema “nunca mais” mais um marco de “sim, de novo”: o genocídio em Gaza, transmitido ao vivo pelo povo palestino.

Os caxemires sempre viram sua resistência refletida na luta palestina contra uma ocupação colonial europeia. Historicamente, têm se solidarizado com a Palestina, organizando manifestações e comícios apaixonados. Mesmo sob ocupação militar indiana, não deixaram de ir às ruas, enfrentando força militar desproporcional, prisão e mutilações. Em 2014, o exército indiano matou um adolescente. A solidariedade se manifestou em grafites vibrantes e slogans. Os caxemires demonstraram solidariedade de todas as formas possíveis. Em 2021, um artista foi preso por fazer arte com a frase “Somos Palestina”. Uma parte importante da cultura política da Caxemira são as orações públicas utilizadas como protesto, ressoando tanto com súplicas pela liberdade da Palestina quanto pela da própria Caxemira. As sextas-feiras costumavam terminar em protestos após as orações da tarde. A Palestina sempre esteve no topo da lista de súplicas dos caxemires. Desde 2019, após serem despojados militarmente de sua quase autonomia e soberania territorial pela Índia, os caxemires têm sido cada vez mais silenciados. Leis cada vez mais restritivas aprovadas pelo governo indiano acabaram efetivamente com protestos públicos e até mesmo com a liberdade básica de expressão, institucionalizando a apropriação de terras e a censura. Apesar das restrições extremas, ainda ocorreram protestos esporádicos, rapidamente reprimidos. Relatos sobre esse silenciamento são raros, pois jornalistas não podem relatar livremente sob leis de imprensa abertamente chamadas de “mordaça da mídia. A repressão indiana é tão severa que proíbe até mesmo mencionar a Palestina em sermões de sexta-feira ou suplicar pela Palestina em caxemir. No entanto, apesar desse cerceamento da liberdade de expressão, as pessoas ainda tentaram se reunir para demonstrar seu apoio.

Os caxemires veem a resistência palestina como um farol para sua luta por autodeterminação e azadî. Para a maioria, azadî significa liberdade da Índia, e para alguns, significa união com o Paquistão. As ideias de Edward Said em seu ensaio “Intifada e Independência ressoam com a tragédia política da Caxemira e sua resistência sem esperança. Como já mencionei, intifada como movimento tocou profundamente a resistência política caxemira. O termo foi adotado para definir sua luta e tornou-se particularmente proeminente no início dos anos 2000. Os apoiadores do movimento pela liberdade caxemira invocaram a “intifada caxemira” para homenagear e reiterar a legitimidade da luta palestina e inspirar sua própria luta por azadî. Argumentei que isso constitui uma forma de “solidariedade afetiva dos caxemires com os palestinos. Essa solidariedade é simultaneamente catártica e valoriza o movimento caxemir. Um caxemir expressa essa empatia profunda da seguinte forma: “as feridas deles [palestinos] são nossas feridas, também lutamos por eles, sabemos o que é estar Maqbooza (ocupado)”.

Nos últimos anos, as lutas na Caxemira e na Palestina têm se conectado cada vez mais, assim como com outros locais de guerras neocoloniais, da Ilha da Tartaruga (América do Norte) ao Afeganistão. Caxemira e Palestina são remanescentes da hegemonia colonial imposta pelo antigo império britânico. Estão lado a lado na agenda das Nações Unidas desde 1948. Ambas as regiões sofrem de formas semelhantes e diferentes sob ocupações militares opressivas e brutais. As disputas “fabricadas” foram anteriormente vistas por uma lente orientalista, e hoje são distorcidas pelo estereótipo anti-islâmico do terrorismo, que nega o direito dos povos às suas terras.

As semelhanças entre a história e a vida cotidiana contemporânea na Caxemira são numerosas demais para serem ignoradas. A desapropriação dos nativos, militarização densa, ecocídio, brutalidade das tropas, postos de controle constantes, operações de repressão, batidas, “encontros” (operações militares letais), e violência direta e indireta são espantosamente semelhantes. Na década de 2010, os protestos caxemires resultaram em cegueira em massa causada por balas de chumbo, o que aumentou ainda mais a ressonância violenta. Também expôs as relações discretas entre Índia e o Estado assentado israelense em comércio de armas, negócios, diplomacia e tecnologia de vigilância. Os símbolos da violência se sobrepuseram tanto que uma foto do rosto ferido de uma menina palestina foi confundida com o de uma criança caxemira. A violência em Gaza, é claro, agora supera qualquer guerra documentada nos tempos modernos.

A resistência caxemira foi influenciada pela literatura palestina, especialmente a ficção e a poesia. Escritores, ativistas e resistentes como Ghassan Kanafani inspiraram-se em alegorias pungentes — “uma conversa entre a espada e o pescoço”. O personagem Handala, de Naji al-Ali, e o rosto revolucionário e corajoso de Leila Khaled tornaram-se parte da imaginação popular na Caxemira. A poesia, em particular, tem sido um veículo de resistência. Poemas como “ID Card” de Mahmoud Darwish, “We Teach Life, Sir” de Rafeef Ziadah e, mais recentemente, “If I Must Die” de Refaat Alareer circularam e ressoaram na Caxemira como formas de catarse e solidariedade. O bardo trágico da Caxemira, Agha Shahid Ali, cidadão americano naturalizado que morreu em 2001, se engajou apaixonadamente com a Palestina em seus poemas, tanto quanto com a Caxemira. Edward Said o convidou para traduzir alguns poemas de Darwish para o inglês, e ele dedicou seu primeiro ghazal publicado a Said.

Na minha própria obra poética, a Palestina emerge organicamente. Em 2010, as forças indianas mataram mais de 112 pessoas e feriram mais de duas mil para reprimir uma revolta. Mais tarde escrevi um poema chamado “No Rose Red in Kashmir” (Não há vermelho-rosa na Caxemira). Inconscientemente, o verso começa na Caxemira e termina em Gaza. Já descrevi esse deslizamento como o inconsciente pesando a dor dos caxemires na balança da Palestina. Abaixo um trecho do poema:

não há vermelho-rosa na Caxemira
algum ruído (ou silêncio) depois
venha — leia as linhas
ilegíveis, sobre mim
e você saberá
que o único vermelho-rosa em Gaza
escorre do seu coração para o meu

A invocação a Gaza não foi consciente, nem um erro, mas um reflexo da psique profunda que identifica a violência neocolonial como um contínuo — da Caxemira à Palestina. É reminiscente do poema pungente de Warsan Shire, onde Atlas, ao ser perguntado onde dói, responde: “em todo lugar, em todo lugar, em todo lugar.”

Para a maioria dos caxemires, como para a maioria dos palestinos, sentir-se estrangeiro em sua própria terra é uma dor constante compartilhada. Os caxemires enfrentam a ocupação militar indiana por meio de mecanismos militares e administrativos que violam sua origem e soberania. Com base em categorias administrativas, as pessoas são separadas para identificação, vigilância e, por fim, desapropriação. Como os palestinos, enfrentam postos de controle, espancamentos, prisões e assassinatos — e todo tipo de violação brutal dos direitos humanos.

À medida que o cessar-fogo entra em vigor em Gaza, a violência horrenda continua, mesmo com suas consequências pairando sobre o povo e a terra. Devemos perguntar: que tipo de fogo está cessando? O que está sendo cessado e o que continua — por que e como? Como mantemos o sonho vivo e vigiamos para parir uma práxis feminista decolonial capaz de atender às feridas do neocolonialismo? Como a intifada nos espaços acadêmicos pode permanecer como um chamado por uma paz justa e pela celebração das pátrias, evitando ser instrumentalizada por políticas neocoloniais movidas pela ignorância sancionada? Refaat Alareer, poeta palestino e fundador do “We Are Not Numbers”, em uma entrevista comovente semanas antes de ser assassinado, ofereceu palavras sábias. Ele disse:

“Se um soldado entrar na minha casa, a única arma que tenho é um marcador de texto branco; e, se necessário, vou jogá-lo nele.”

O marcador — símbolo do conhecimento, da escrita e da transmissão, e destacado por Alareer — está no centro da práxis feminista decolonial. O conhecimento é a única arma necessária, se bem empunhado. Em seu poema tragicamente célebre “If I Must Die”, Alareer nos convida a construir uma enorme pipa branca, como um anjo do amor — que conforta os feridos e cansados —, a criar solidariedade epistêmica, pontes de saber e de amor por vir, que permitam transcender os horrores do genocídio colonial, da desapropriação e da morte.

Como já afirmei, a solidariedade feminista é a manifestação de um marcador de texto. Ela afirma a possibilidade radical de falar e criar comunidade — mesmo enquanto estamos sobre o solo ferido da Ilha da Tartaruga e de tantas outras pátrias feridas que habitamos, todas ocupadas, da Falasteen à Caxemira; também da condição feminina à identidade de gênero; das fortalezas interiores da alma até a pele e os ossos que encarnam a humanidade — todos sob cerco. Como estudiosas decoloniais em corpos racializados, habitando almas autorreflexivas e empáticas, permanecemos firmes. O povo caxemir vive sob uma ocupação militar camuflada em uma ferramenta chamada “democracia” — um cavalo de Tróia, uma engenhoca neocolonial eurocêntrica e oestefálica, usada como Estado-nação contra existências culturais orgânicas em toda parte. Essa entidade horrenda, como em outros lugares onde a guerra tem residência permanente, devora a terra, os corpos, as memórias e a história da Caxemira. As pessoas são entorpecidas, silenciadas — forçadas a esquecer ativamente e a se agarrar à vida nua. Devemos agarrar a possibilidade radical de falar — e de sermos ouvidos — ao conectarmos os pontos.


 

Este ensaio foi originalmente publicado pela Social Text e é parte de um projeto maior, com alguns exemplos relacionados que já apareceram ou serão publicados em breve em outras publicações. Os hiperlinks ao longo do artigo garantem a originalidade e a atribuição ética. Este ensaio faz parte da série “Feministas por uma Palestina Livre: Voices from Palestine, Iraq, Afghanistan, Kashmir, Iran, and Beyond”. 

 

Ather Zia, PhD, é antropóloga política, poeta, escritora de ficção curta e colunista. É professora associada do Departamento de Antropologia e Estudos de Gênero da Universidade do Norte do Colorado, em Greeley. Ather é autora de Resisting Disappearances: Military Occupation and Women’s Activism in Kashmir (2019), que ganhou a Menção Honrosa Gloria Anzaldúa 2020, o Public Anthropologist Award 2021, o Advocate of the Year Award 2021 e uma menção honrosa para o Rosaldo Book Prize 2021. Ela foi incluída na Femilist 2021, uma lista de cem mulheres do Sul Global que trabalham com questões críticas. Ela é coeditora de Can You Hear Kashmiri Women Speak? (Women Unlimited, 2020), Resisting Occupation in Kashmir, (University of Pennsylvania Press, 2018) e A Desolation Called Peace (Harper Collins, 2019). Ela publicou uma coletânea de poesias, The Frame, e outra coletânea será publicada em breve. A poesia etnográfica de Ather sobre a Caxemira ganhou um prêmio da Society for Humanistic Anthropology. Ela é coeditora da revista Cultural Anthropology (2022-25).