Alianças para um levante por vir (Benjamin Seroussi)
Texto lido no dia 14 de abril de 2025, na Ocupação 9 de julho, por ocasião do Ato contra a guerra em Gaza e do lançamento do livro Pensar após Gaza, da n-1edições.
Boa tarde,
Meu nome é Benjamin Seroussi. Este texto tem um tom pessoal, mas reflete uma posição coletiva. Agradeço à Suely Rolnik aqui presente que subscreve este texto. Sua escuta validou minha escrita. Agradeço ao Peter Pál Pelbart pelo convite e, claro à dona Carmen, por nos receber nesta casa do MSTC, casa de luta por moradia, e casa da esquerda, e portanto da esquerda judaica. Estamos sempre aqui para somar com as lutas que a Ocupação encabeça pois são as nossas lutas como sociedade: moradia, direito à cidade, antirracismo. A luta contra o antissemitismo no Brasil precisa ser entendida como forma de fortalecer a luta antirracista que infelizmente estrutura nossa sociedade.
Estou aqui em nome do coletivo Judias e Judeus pela Democracia São Paulo, o JJPD. É um coletivo que nasceu para se opor ao Bolsonaro em 2018, à negação do assassinato do Herzog, ao pacto de parte da comunidade judaica com a extrema direita. É um coletivo para o qual a questão do sionismo e do anti-sionismo nunca foi central por duas razões. Em primeiro lugar porque, mesmo sabendo que as questões locais não podem ser dissociadas de questões transnacionais, o JJPD sempre quis reforçar seu foco em lutas brasileiras. Em segundo lugar, porque sionismo e anti-sionismo são conceitos que, na comunidade judaica, geram muito mais polarização do que escuta e transformação. Por isso, como estratégia, optamos por focar na luta contra o racismo, a ocupação, a supremacia, o apartheid como política de Estado, o colonialismo e pelos direitos humanos.
Eu mesmo, por incrível que pareça, quase não convivi na minha vida judaica com o sionismo, nem com o anti-sionismo. Meu judaísmo é diaspórico. Nasci na França. Moro no Brasil há 20 anos. Meu pai nasceu na Tunísia. Meus avôs tunisianos foram enterrados em Jerusalém. Meus avôs maternos nasceram na Polônia. Na minha família, há muito tempo que ninguém vive, nem morre, onde os pais nasceram. Pertenço ao que chamamos de “diáspora judaica”. Parte do meu povo fundou um Estado chamado Israel, sim, mas entendo que meu povo como um todo não tem um estado, nem um exército.
Hoje, eu dirijo a Casa do Povo, uma instituição judaica filha do pensamento judaico revolucionário – do Karl Marx à Rosa Luxemburgo, passando por muitos outros pensadores menos conhecidos aqui. Esta Casa nasceu nos anos 40 da união de movimentos antifascistas judaicos: anarquistas, comunistas e socialistas. Alguns eram anti-sionistas como o Bund. Outros eram sionistas marxistas como o Poale Zion. Muitos eram comunistas, não sionistas e queriam apenas ser brasileiros.
Em 1945, o anti-sionismo morreu na comunidade judaica. Ele renasce hoje – o coletivo Vozes Judaicas por Libertação é um exemplo disso –, mas em 1945, ele estava morto. Quem o matou foi o antissemitismo através do Holocausto. Este mesmo antissemitismo que foi a condição de existência de Israel. Não foi o sionismo que fundou Israel. Foi o antissemitismo que transformou judeus em refugiados. Aliás, muitos militantes do Bund anti-sionistas terminaram suas vidas em Israel. A história é cruel.
Mas por que estamos aqui?
Porque a história continua cruel.
Todo mundo aqui sente dor ou raiva com o que tem sido chamado de genocídio em Gaza, com os ataques dos colonos na Cisjordânia, com o apartheid nos território ocupados, com o governo Netanyahu, mas também com a própria estrutura do Estado de Israel. Algumas pessoas perderam parentes, outras se solidarizam. Palestinos recebem bombas na cabeça. Judeus se sentem instrumentalizados. Não judeus inconformados. Mas talvez a pergunta não seja “Por que estamos aqui?” mas “o que estamos fazendo aqui?” ou, para melhor dizer, “o que o fato de estarmos aqui juntos hoje faz?”
Me pergunto isso enquanto celebramos Pessach. Hoje é Yom Tov. É um dos dias mais importantes do calendário judaico. Eu deveria estar preparando o seder de Pessach com minha família, mas eu escolhi estar aqui neste lugar que chamo também de casa. Em Pessach, nos lembramos da saída do Egito e do fim da escravidão do Povo Judeu e, conforme pede o rito, tentamos entender se não estamos no Egito hoje – quais são as nossas amarras que nos privam de liberdade – e tentamos nos solidarizar com outros povos que hoje ainda vivem situações de opressão.
Me pergunto isso enquanto estamos prestes a celebrar o 82o aniversário do Levante do Gueto de Varsóvia. Em abril de 1943, o gueto de Varsóvia se levantou contra a máquina nazista. Desde então, na Casa do Povo, tentamos entender, todo ano, o que significa se levantar. Durante a ditadura militar, nunca deixamos de comemorar esta data. A cada levante tentamos traduzir a palavra “levante” para outros povos ou em outras línguas. Sabem como se fala levante em árabe? Intifada! Traduzir esta palavra é nos perguntar até que ponto podemos olhar para o levante dos outros e quais seriam esses levantes?
Mas lembrar para quê? Só vejo massacres e mais massacres. Lembrar para lavar a nossa alma? Para mostrar que somos judeus diferentes dos que costumam falar em nosso nome? Para mostrar que somos “bons judeus”? Acho que podemos fazer mais do que isso.
Vejo muitos judeus e muitas judias aqui hoje em solidariedade com este ato. Sei que todas e todos sofreram pressões e até ameaças para não estarem aqui, pois assim como as famílias brasileiras brigaram e seguem brigadas por causa do crescimento da extrema direita, as nossas famílias judaicas estão também rachadas. Mas estamos aqui porque sabemos que isso não se compara a violência que passam os que estão em Gaza agora.
Mas, repito, acho que podemos fazer mais além de apenas estarmos aqui carregando dores e brigas. Pelo menos o que eu vim fazer aqui é tentar trazer ferramentas para tecer alianças concretas. Não sei se isso interessa. Mas vou tentar aqui. Acho que eu posso propor isso considerando que eu sou, infelizmente, a única pessoa aqui presente que trabalha na direção de uma instituição judaica – uma das mais antigas do Brasil – ao mesmo tempo em que representa um coletivo que mobiliza mais de 200 judias e judeus.
Vou falar para vocês o que costumo dizer quando falo com judeus e com não judeus.
Quando falo na comunidade judaica:
1. explico que “Palestina do rio ao mar” não significa a exterminação de judeus e judias israelenses, mas uma mudança radical do que significa um Estado Nação ali e da sua dimensão étnica. Reconheço, porém, a ambiguidade e a potencial violência que carrega a expressão para nós, judias e judeus.
2. explico que o slogan “Palestina livre” e o símbolo da “melancia” deixaram há muito tempo de ser apenas referências à questão palestina, mas que, depois de décadas de luta e articulação política de base de’ movimentos palestinos ao redor do mundo, já significou “fim da guerra no Vietnã”, “contra a xenofobia na França, “reforma agrária”, “demarcação de terra”, “fim da colonização”, “fim da PM” e dos camburões comprados a Israel.
3. explico que se eu tivesse nascido palestino, teriam grandes chances que eu ser anti-sionista. Portanto, reforço que se judeus e judias da esquerda querem fazer alianças com palestinos para alcançar paz, justiça e reparações, não podem equiparar o anti-sionismo e o antissemitismo.
4. reforço que se solidarizar com a causa palestina não é apoiar o Hamas, e que violências e mais violências por parte de Israel em nenhum momento vão permitir o surgimento de um movimento pela paz. Lembro que os movimentos palestinos pela paz inclusive já foram reprimidos violentamente por Israel.
5. digo, por fim, que falar em genocídio – ainda mais para nós da esquerda que já denunciamos até o Bolsonaro como genocida durante a pandemia do COVID-19 – não banaliza necessariamente o Holocausto. Ao contrário, o conecta com o tempo presente na tentativa de evitar outros genocídios
Agora quando falo fora da comunidade judaica, como hoje:
1. peço para não tornarem a priori os judeus como suspeitos ou responsáveis pelas ações perpetradas pelo governo de Netanyahu, parcialmente em nosso nome. Reforço que não votamos em Israel (e que muitos de nós nunca pisaram em Israel). Mas peço para tentar escutar o que judeus e judias têm a dizer mesmo que vocês discordem parcialmente! Talvez seja valioso nos ouvir! Talvez tenhamos algo importante a dizer como comunidade.
2. peço para entender que existe um trauma presente e muito recente – o Holocausto – que está sendo instrumentalizado pela extrema direita para criar em nós, judias e judeus, uma sensação constante de medo. Por isso, peço também, por favor, para não dizerem que “deveríamos ter aprendido algo com o Holocausto". Violência não é pedagógica. Judeus não saíram melhores do Holocausto. Pessoas escravizadas não saíram melhores da escravidão. Violência não ensina nada a não ser violência.
3. peço para entender que Israel não é um monobloco e que existem forças que lutam lá – judias e não judias – contra o apartheid nos territórios ocupados, contra a própria estrutura do Estado-Nação tal como ele se configura hoje, contra as violências exercidas sobre as populações palestinas da mesma forma que, no Brasil, existem forças que lutam contra o fascismo, contra a violência voltada para pessoas racializadas, pobres, indígenas.
4. falo que podemos ajudar a esquerda a lutar contra o antissemitismo de forma efetiva, mantendo esta luta conectada à luta contra o racismo e pela democracia. Digo que podemos evitar assim que a esquerda caia nas armadilhas da extrema direita (antissemita por sinal, mesmo que fantasiada de filossemita), que usa a falta de uma política clara contra o antissemitismo para enfraquecer a própria esquerda e calar vozes palestinas.
5. peço, por fim, para entender que pedir a volta dos reféns israelenses não é negar em nenhum momento a prisão política de dezenas de milhares de palestinos e menos ainda fingir que tem uma simetria em algo que não é uma guerra, mas sim uma limpeza étnica. Ouvir a dor de uns, não apaga nem diminui a dor do outros.
Voltando ao início da minha fala: o que estamos fazendo aqui? Alianças! É isso que eu espero. Alianças para acabar com os massacres e com as causas dos massacres – lá e aqui! Mais um homem senegalês morto anteontem pela PM! Estamos cercados. Então precisamos nos aliar e estarmos juntos com as nossas diferenças.
Eu e JJPD podemos trazer boa parte da comunidade judaica de esquerda para um próximo encontro deste. Se isso interessar, nos convidem. Estaremos. Nós podemos participar da construção do próximo ato. Aliança verdadeira não é consigo mesmo, pois o aliado bom é o aliado diferente e o aliado que abre portas. Nós podemos ser aliados justamente por sermos diferentes. O resto é narcisismo. Como diz o escritor Gary Younge na abertura do seminário Memórias em Disputa no ano passado na Casa do Povo:
“Para as solidariedades serem realidade, não podemos apenas anunciá-las, mas precisamos trabalhar nelas e por meio delas. (…) Nesse sentido, a solidariedade está mais próxima de um verbo do que de um substantivo.”
Por isso, estamos aqui. Mir zaynen do! Obrigado e chag sameach!