Este momento não está nos autores liberais, como Locke, e sua complacência com a escravidão devido à supremacia do direito de propriedade. Ele não se encontra sequer no iluminismo francês, tão combativo em vários campos mas capaz de se calar de forma quase absoluta a respeito do Code Noir e da escravidão nas colônias. (…)
Mas Buck-Morss não utiliza tal constatação para deplorar todo discurso universalista como simples máscaras de interesses inconfessáveis de dominação e de opressão. Ela quer identificar o momento em que a escravidão aparece no coração da reflexão filosófica moderna redimensionando seu discurso de emancipação e este momento não será outro que a constituição de uma teoria do reconhecimento na base da filosofia social. Ou seja, trata-se de voltar, mais uma vez, a uma das páginas mais comentadas da história da filosofia, a saber, a “dialética do senhor e do escravo”, de Hegel.
Buck-Morss nos lembra como o filósofo alemão acompanhava todos os passos da revolta dos escravos no Haiti, a primeira revolta de massa a estabelecer um quadro civil geral de liberdade, o que a leva a defender que este seria um dos eixos maiores da constituição desta figura da consciência em A fenomenologia do Espírito. Ou seja, o “escravo” aqui, embora tenha um papel genérico é também uma figura concreta que procura responder a processos sócio-políticos decisivos no início do século XIX. Tal hipótese não é apenas resultado de uma arqueologia materialista que compreende o fazer filosófico como reflexão imediata sobre os impactos do presente. Ela é estratégia que visa mostrar o que pode ser uma história mundial não mais dependente de um horizonte colonial.
Neste sentido, tudo se passa como se fosse questão de afirmar que a Revolução Francesa só se transforma em fato da história mundial quando ela é apropriada pelos escravos contra os próprios senhores…
Vladimir Pinheiro Safatle